quarta-feira, 12 de março de 2008

o amor é sublimemente natural. Amamos tudo e amamos ninguém sem nos importar com isso. Na escolha do objecto do nosso amor não podemos ter rédea alguma: é totalmente visceral e inconsciente o desejo que anima esse movimento, seja ele meridional ou setentrional. A razão não pode nada contra ou a favor do amor; o amor é, pela sua própria natureza, irracional (e talvez seja melhor dizê-lo antes arracional, já que ele não escolhe ser o contrário da razão mas, sendo superior a esta e não estando dentro do domínio da sua esfera de acção, é simplesmente algo diferente, incomensurável mesmo, quanto à sua natureza). E aqui é que se torna importante distinguir o amor da relação.

O amor existe por si, somente por si próprio, e independentemente de qualquer relação que se possa estabelecer. São as pessoas que estabelecem as relações, e como todas as coisas que são geradas pelas pessoas, as relações estão sujeitas aos constrangimentos do tempo e do espaço que vigoram no mundo em que vivemos. E exactamente porque estão sujeitas a esses constrangimentos, seguem o fim inexorável de todas as coisas: a desagregação. Sendo a relação algo que foi gerado, sendo portanto alguma espécie de contrato social que foi celebrado entre pessoas que se encontram a viver numa dada sociedade para benefício mútuo e próprio, então é inevitável que esse contrato, enquanto algo material - enquanto algo que é material na sua substância, digamos assim - , se desagregue como acontece com qualquer outro objecto cuja existência é exclusivamente material.

Um exemplo bastante claro da diferença que existe entre amor e relação é o existirem pessoas que se amam mesmo encontrando-se separadas por uma grande distância - física - entre si. Os constrangimentos espácio-temporais não podem diminuir ou aumentar o amor que essas duas pessoas sentem entre si, se ele existe; o amor tem, portanto, uma substância que está acima desses constrangimentos. Mas esses mesmos constrangimentos espácio-temporais podem condenar a relação entre essas duas pessoas, já que a relação é algo material que se constrói entre duas pessoas e que tem que ver com a organização do seu espaço e do seu tempo - ambos materiais - às contigências de uma vida conjunta. Não é possível desenvolver ou construir sequer uma relação se essas duas pessoas não vivem uma vida conjunta, isto é, se não habitam a mesma casa, ou se não se vêem frequentemente; em suma, se não concretizam o amor que sentem em algo material ou físico. A impossibilidade de concretização de um ideal, seja ele qual for, acarreta na alma humana uma grande angústia, pois priva o corpo - a parte daquilo que somos que sentimos como mais real - da consagração de toda a plenitude que o amor puramente espiritual - da alma - permite experienciar.

Por um lado, a contemplação que o amor puramente espiritual proporciona é suficiente para que se viva uma vida muito rica, pese embora a grande angústia que uma situação como essa provoca na alma devido à ausência de concretização. Por outro lado, essa mesma concretização do amor na relação - qualquer que seja o seu tipo - não traz um verdadeiro sentimento de completude: se é verdade que sara muitas das angústias da alma, não é menos verdade que introduz outras de ainda mais difícil resolução. As angústias da alma que derivam da não concretização do amor são saradas, é certo; mas é preciso notar que a concretização do amor, enquanto acto físico, está não menos sujeito às constrições espácio-temporais do que um qualquer tipo de relação. Assim, e ao contrário da contemplação do amor puramente espiritual - cuja substância é imperecível - , a concretização do amor enquanto acto físico tem uma natureza perecível, ou finita. É por essa razão que traz novas e mais fortes angústias à alma: qualquer concretização do amor terá um início e um fim, visto que, enquanto objecto puramente físico, está, como todos os objectos físicos, sujeita à desagregação. A angústia que nasce na alma e que deriva da inexistência de concretização do amor dá lugar então a uma angústia - ainda mais intensa - que deriva da constatação da impossibilidade de concretização imperecível do amor puramente espiritual. Perante esta escolha - entre a contemplação do amor puramente espiritual e a concretização material do amor puramente espiritual - , escolha esta que todos nós somos obrigados a fazer, só poderá surgir como sensato escolher a contemplação do amor puramente espiritual. Na verdade, entre escolher uma angústia da alma suave (ou suportável) ou uma que nos atormenta muitas vezes mais (e que pode chegar ao ponto de se tornar insuportável), o caminho mais sensato a seguir é aquele que nos leva à maior realização pessoal, e portanto à completude, mesmo se com isso temos que carregar a cruz da não concretização do amor puramente espiritual.

Como as diferenças entre a contemplação puramente espiritual do amor e a concretização material desse amor nos permitem explanar qual a diferença de qualidade entre o amor e a relação, pode-se notar ainda outro corolário desta exposição: a relação - seja de que tipo for - , exactamente por ser a concretização material e finita do amor puramente espiritual, está também condenada à desagregação. Assim, a manutenção indefinida de qualquer relação entre duas pessoas não é natural; é mesmo contrária à própria natureza dos objectos materiais (que estão sujeitos à desagregação). Assim, como se explica a existência dos casamentos, mesmo sabendo que a sua natureza finita - pois que de um tipo de relação se trata - os conduz inexoravelmente à desagregação? Só podemos explicar este tipo excepcional de relação se considerarmos a existência de contratos sociais: cada uma das partes envolvidas neste contrato abdica de uma porção da sua liberdade individual para tornar essa relação o mais duradoura possível (e é necessário lembrar que nem mesmo neste caso se pode dizer que a relação superou os constrangimentos espácio-temporais: a morte física põe fim a qualquer tipo de relação que possamos estabelecer em vida).


Tratado sobre as relações humanas

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