sábado, 25 de outubro de 2008

o elogio da loucura

Não pode ser verdadeiro um discurso que, tendo admitido a existência de um apaixonado, postule que devem conceder-se favores ao não apaixonado de preferência ao apaixonado, invocando como justificação o facto de o primeiro agir sensatamente e o segundo se encontrar possesso do delírio e da loucura! Seria verdadeiro se a loucura fosse apenas um mal, mas acontece que muitos dos nossos bens nascem da loucura inspirada pelos deuses.

Efectivamente, é em estado de delírio que as profetisas de Delfos e as sacerdotisas de Dódona, prestam grandes serviços à Grácia, já na ordem privada, já na ordem pública, pois, quanto se encontram no seu perfeito juízo, as suas possibilidades ficam reduzidas a pouco ou a nada. Depois delas podemos falar da Sibila? Podemos falar de todos os que, utilizando o poder divinatório que um deus lhes inspira, ditaram a muita gente e em muitas ocasiões o recto caminho a seguir? Fazer isso seria perder tempo com o que é evidente para todos nós!

Mas também esse facto merece ser aqui testemunhado, pois constitui uma prova de que na Antiguidade os homens, ao instituírem os nomes, não consideravam o delírio, ou mania, uma coisa vergonhosa, nem motivo de opróbrio (...). Por este motivo, a arte da profecia suplanta, já em perfeição, já em dignidade, a arte dos augures, tanto na denominação como nas funções, e assim, tal como os Antigos no-lo testemunham, a loucura inspirada pelos deuses é, por sua beleza, superior à sabedoria de que os homens são os autores!

Mas não ficamos por aqui: enquanto essas doenças, esses flagelos terríveis que, em consequência de antigos ressentimentos, vindos não sabemos de onde, ainda existem em certos indivíduos de uma raça, o delírio profético manifestou-se em alguns predestinados e encontrou o meio de afastar esses males, precisamente pelo recurso às preces dirigidas aos deuses e pela prática de cerimónia em seu louvor. Graças ao delírio, surgiram os ritos catárticos e iniciáticos, pondo o que neles participa ao abrigo dos males, tanto do presente como do futuro, e fazendo com que os homens, animados de espírito profético, encontrem o meio de proteger-se contra aqueles males.

Há ainda uma terceira espécie de loucura, aquela que é inspirada pelas Musas: quando ela fecunda uma alma delicada e imaculada, esta recebe a inspiração e é lançada em transportes, que se exprimem em odes e em outras formas de poesia, celebrando as glórias dos Antigos, e assim contribuindo para a educação da posteridade. Seja quem for que, sem a loucura das Musas, se apresente nos umbrais da Poesia, na convicção de que basta a habilidade para fazer o poeta, esse não passará de um poeta frustrado, e será ofuscado pela arte poética que jorra daquele a quem a loucura possui.

Embora não sejam somente estas, já ficas sabendo quais são as belas vantagens que se podem usufruir de um estado delirante inspirado pelos deuses. Podemos agora concluir que não devemos recear, nem devemos deixar-nos confundir pelo espantalho de uma doutrina, segundo a qual se deve preferir a amizade do homem sensato à amizade do homem apaixonado. Bem pelo contrário, a vitória deve ser dado ao apaixonado, pois o amor foi enviado pelos deuses no interesse do amante e do amado, e é isso mesmo, contra aquela tese, que procuraremos demonstrar: os deuses desejam a suprema ventura daqueles a quem foi concedida a graça da loucura.


Platão dá voz ao discurso de Sócrates a Fedro
(tradução por Pinharanda Gomes)

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