segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Tratado da descida do céu à terra


É preciso estabelecer um ideal. Este ideal tem de ser o maior ideal que nos é possível imaginar no nosso estádio evolutivo. O maior ideal que algum homem pode ter no nosso estádio evolutivo é o de se cumprir por inteiro. Por extensão, o maior ideal que a humanidade pode ter é o de se cumprir toda por inteiro. Cumprir o que se é significa concretizar na prática todo o seu potencial latente. Para nos referirmos a este ideal máximo com o desembaraço da linguagem, vamos usar o conceito de anarquismo.


Uma vez tendo um ideal, um objectivo a cumprir, é preciso analisar o que é preciso para que o ideal se cumpra na prática. Para isso, é preciso conhecer a fundo a situação actual em que vivemos e concluir o quanto afastada ela está da situação ideal - qualquer idealização, se existe, existe porque ainda não foi cumprida na prática - , isto é, em que pontos ela se aproxima do ideal e em que pontos ela se distancia do ideal. O plano será, para os pontos em que ela se aproxima do ideal, levá-la ainda mais perto dele; e para os pontos em que ela se distancia do ideal, eliminá-los dela.


Sabendo aquilo que é preciso melhorar para levar o anarquismo ao mundo, é preciso estabelecer qual o melhor sentido para dirigir os nossos esforços. Entre tudo aquilo que falta fazer para levar o anarquismo ao mundo, há coisas fáceis e coisas difíceis de conseguir, bem como coisas mais importantes e menos importantes de fazer. Se é certo que é preciso começar pelas coisas mais importantes, também será certo que as coisas mais importantes são as que mais nos escapam porque não temos, na maior parte dos casos, o poder (os meios) para as fazer. Como as coisas mais importantes são, na maior parte dos casos, as coisas mais difíceis de fazer, devemos voltar-nos antes para as coisas que são mais fáceis de fazer - isto é, para aquelas que mais nos estão próximas.


Se queremos cumprir o ideal anarquista naquilo que nos está mais próximo, então temos de cumpri-lo em dois planos diferentes. No plano material, é preciso que tudo esteja disponível para toda a gente. Esta tarefa não é menos que uma tarefa titânica para alguém que viva no nosso mundo. Existe muito trabalho a fazer neste plano, e portanto qualquer pessoa razoável poderá facilmente chegar à conclusão de que o seu contributo a este nível será sempre muito pouco face a tudo aquilo que há a fazer - isto é, em relação a tudo o que há que construir e a tudo o que há que destruir. Assim, uma pessoa razoável terá forçosamente de deixar esta tarefa para segundo lugar, e agir no plano oposto. No plano mental, é preciso destruir todo e qualquer resquício de ficção social que possa existir - as únicas diferenças que devem existir entre os homens são as diferenças naturais, que são aquelas que fazem com que uns homens nasçam mais altos que outros, ou mais inteligentes que outros, e não as diferenças artificiais à nossa natureza e que derivam do modo de funcionamento da nossa sociedade, como a quantidade de dinheiro que se tem ou ganha, ou o cargo que se ocupa. Destruir qualquer registo de ficção social consiste em tomar consciência de que as diferenças sociais são diferenças artificiais - e portanto ilusórias. Vamos chamar essa acção de destruição das ficções social, por comodidade de linguagem, revolução mental. Uma vez que cumprir algo no plano material apresenta muitos e variados obstáculos ao comum dos homens, é preferível começar pela revolução mental.


Se realizar a revolução mental é o primeiro objectivo do anarquista prático, é preciso decidir sobre a forma pela qual pode o anarquista prático cumprir essa revolução mental no mundo. Primeiro, ele deverá começar por aquilo que lhe está mais próximo, que é a sua própria mente. Enquanto a revolução mental não se der na sua cabeça, será impossível passar essa influência aos outros. Uma vez que ela se tenha dado na sua cabeça, isto é, uma vez que a sua mente não se encontre mais poluída pelas ilusões das ficções sociais, o anarquista prático deve concentrar os seus esforços em limpar as mentes dos outros.


Para livrar as mentes dos outros das ficções sociais é preciso que eles tomem consciência de que a existência das ficções sociais é meramente ilusória e não possui nenhum fundo de verdade. Aquilo que o anarquista prático procura, então, é libertar, pela revolução mental, as mentes dos outros. Para que seja possível libertar as mentes dos outros, é preciso ter um método para o fazer. O melhor método para libertar as mentes dos outros será aquele que consiga fazer com que o maior número de pessoas tome consciência da não-realidade das ficções sociais. Existem dois métodos pelos quais os anarquistas práticos podem fazer a revolução mental: o método directo e o método indirecto. O método directo consiste no contacto directo com cada pessoa na sua prática quotidiana. Este método tem a grande vantagem de ser mais directo e poder ser rapidamente adaptado pelo anarquista prático no desenrolar do contacto com a pessoa. Na verdade, ele requer a adaptação do anarquista prático à estrutura mental da pessoa com quem ele contacta. O método indirecto consiste na promoção do contacto de cada pessoa com uma obra de criação anarquista. Neste caso, o contacto com o anarquista já não é directo, e requer portanto a adaptação da pessoa (o espectador) à estrutura mental da obra de criação anarquista. Dos dois métodos, o melhor será sempre aquele que for mais directo, pois é aquele pelo qual as ficções sociais podem ser arrancadas da mente dos outros de uma forma mais controlada e eficaz.


Apesar do método directo ser o mais eficaz, é humanamente impossível ao anarquista prático que viva neste mundo chegar a todas as pessoas que existe neste mundo, que é o objectivo do verdadeiro anarquista. Assim, e para além de se aplicar na destruição das ficções sociais pelo método directo, o anarquista prático, para chegar ao maior número de pessoas, tem de seguir também o método indirecto.

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