sábado, 21 de junho de 2008

Como ler Os Lusíadas

é simples:
Do que obraram os Antigos, despir-se tudo.
Ficar, só o ritmo - e o que é absoluto.


Não andam muito que no erguido cume/Se acharam,
onde um campo se esmaltava/De esmeraldas, rubis,
tais que presume/A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vêm no ar,
que o lume/Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superfícia, claramente.

Qual a matéria seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto/De vários orbes,
que a Divina verga/Compôs,
e um centro a todos só tem posto.
Volvendo, ora se abaxe, agora se erga,/Nunca s'ergue ou se abaxa,
e um mesmo rosto/Por toda a parte tem;
e em toda a parte/Começa e acaba,
enfim, por divina arte,//Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquetipo que o criou.
Vendo o Gama este globo,
comovido/De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a Deusa:
— "O transunto,
reduzido/Em pequeno volume,
aqui te dou/Do Mundo aos olhos teus,
pera que vejas/Por onde vás e irás
e o que desejas.

"Vês aqui a grande máquina do Mundo,/Etérea e elemental,

que fabricada/Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo/Globo e sua superfícia tão limada,
É Deus:
mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende




Esta prosa feita poesia é absolutamente extraordinária. O Ritmo, verdadeiro Mestre desta Obra, e também chefe que preside à Poesia, é quem dita o passo. Se Camões fora a escrever agora, sê-lo-ia sem embaraço. Rimando aqui e acolá para soar melhor ao ouvido; rimando acolá e aqui para da métrica antiga ficar conhecido, lá deu ele à pena o seu engenho. Fazia o que queria, e as ideias que na cabeça lhe apareciam poria claras, se não fosse a reverência ao Grego e ao Romano exigir, qual social contrato, que para a sua poesia fluir pelos salões de nobres e princesas, de reis e de burguesas, sem qualquer perigo de acossado, fosse escrever grandezas na forma esta em que era apreciado. Vieira tinha os Sermões, que de prosa são todos, prontos a declamar em salões, e a argumentar em estrado; mas o Pessoa também usou da poesia, e para que também a ele não o fizessem rogado, encaixava sua mestria num poema solto e simples - mas não apagado. Grande é a sapiência, que destes homens fez o engenho, de construir para agradar a outros, as obras suas em originais de antanho. Génio ou luas? Apenas empenho, vontade de transmitir a outros o ouro que neles vivia, com brilho tamanho.

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