segunda-feira, 30 de novembro de 2009

ALTER-MODERNISMO

Ainda me custa a crer que uma proposta tão inteligente e visionária tenha vindo de um francês. É um choque, dada a tendência superiorizante e snob de se considerarem os donos da filosofia mundial - eles que fiquem com o autoritarismo europeu, que é o que merecem! - ; mas a verdade é que veio de um francês. Claro que, vindo de um francês, só podia vir de um francês que tivesse poucas características francesas. Não é por acaso que uma ideia interessante só nasce de um francês que esteve noutros países do mundo, e que está deslocalizado em relação à França. Até sabe falar inglês - pasme-se! E, curiosamente, ele chegou até a vir a Portugal este ano, à Fundação Gulbenkian. Coincidência? - Certainly not!

Qualquer pessoa que fique a conhecer o choque pós-modernista que houve, com novas interpretações que valeram para a historiografia, a arte, a literatura, a análise conceptual, e até mesmo para o modo de olhar para a ciência; qualquer pessoa que esteja atenta a esse abalo sísmico que a desconstrução provocou, que o questionamento das normas instituídas, que as revoltas do Maio'68 significaram, que a queda do Muro de Berlim simbolizou; qualquer pessoa pode notar que esse espírito crítico, essa atitude crítica contra tudo e contra todos, essa inconformidade demolidora e arrasadoras de barreiras arrastou; tudo isto, qualquer pessoa pode notar que já não é bem o mundo em que vivemos. A grande noção de progresso, a exaltação do conceito de força, os sonhos modernistas de deixar a ciência conduzir o avanço da humanidade caíram por terra. Tivemos uma guerra mundial, tivemos darwinismos sociais perversos, eugenias medonhas, confrontos raciais e holocaustos, tivemos desabamentos económicos e grandes depressões, tivemos outra guerra mundial, tivemos revoluções e contra-revoluções na Rússia e na China; nada disso mudou o mundo para melhor. E a atitude pós-modernista veio pôr tudo em causa. Casaram-se todas as dúvidas com todas as certezas. Mas hoje, do princípio do século XXI, as coisas já não são assim. Novas possibilidades tecnológicas despontam, e novos perigos globalizadores, uniformizados e anuladores de todas as diferenças naturais e humanas despontam. Alguma coisa mudou, e a tecnologia para isso muito contribuíu. A chamada Web 2.0 levou a isso. Agora, o ponto de partida não está nas velhas instituições. Já toda a gente sabe que não funcionam, não vale a pena criticá-las. Agora, temos informação ao nosso dispôr como nunca tivemos, e temos os meios tecnológicos mais poderosos para poder aceder a ela. O ponto de partida, agora, é o próprio mundo.

Eu próprio tentei definir esta sensação, esta nova atitude que já despontou. Acho que consegui alguma coisa, lá pelos lados da Biologia, e acho que essa coisa também vai acabar por transvazar para toda a cultura; mas não é exactamente agora o momento. Agora, o momento é outro. A proposta de Álvaro de Campos no seu ULTIMATUM continua tão actual como em 1917, e hoje ainda mais actual. Creio que chegámos àquilo a que se pode chamar o ponto máximo de desadaptação entre a nossa inteligência e os estímulos que o mundo exterior nos dá. Não nos é possível hoje manter a nossa constituição psíquica actual e ter capacidade mental para receber e processar todos os estímulos culturais com os quais a nossa inteligência contacta. E esta situação é insustentável, não é estável e não pode continuar. Mas, se é certo que não pode continuar, o que fazer então?

A nossa constituição psíquica não pode continuar como até hoje. E, ou realizamos um acto de cirurgia mental - Campos fala de uma mutilação - , ou então facilmente enlouqueceremos. A única resposta que encontro está naquilo de que já Campos falava: a despersonalização, a multiplicação das personalidades. Cada um de nós terá de efectuar uma cirurgia mental que consiste em esquartejar aquilo a que chamamos 'personalidade' para passar a sentir de todas as maneiras. Esta heteronimização não passa necessariamente pela criação de heterónimos, embora a criação de heterónimos seja uma das formas de lá chegar. Esta cirurgia mental, esta mutilação, trata-se de uma outração, de uma alter-ação, de um tornar-se outro, para poder sentir de outra maneira - e de todas as maneiras! - , para poder evoluir, mentalmente, em todas as direcções ao mesmo tempo.

Também tentei chegar a um nome para esta atitude. Outrismo? Multimodismo? Multiplismo? Das propostas que me apareceram, pareceu-me mais indicada a de Heteronimismo. Mas, mesmo assim, não soava bem. Parece uma palavra demasiado complicada e obtusa. O importante era a ideia de outro, a ideia de tornar-se outro, de tornar-se diferente daquilo que se já é. Qual não é o meu espanto quando encontro uma pessoa, do outro lado do globo, com um nome perfeito para o caso? ALTERMODERNISMO. É disso que se trata, de ser-se outro. Estava fundada uma nova doutrina, o primeiro grandioso projecto do século XXI, o Novo Paradigma. (Reparem só na incomensurabilidade que há entre o mundo pós-modernista e o mundo altermodernista. Falam uma linguagem completamente diferente.)

Nicolas Bourriaud fala uma outra linguagem. Uma linguagem que é múltipla, em que os diversos mundos que compõem o nosso microcosmos reflectem finalmente os diversos mundos de que é feito o macrocosmos. Estabelecer redes entre esses mundos do nosso microcosmos; identificar as características dessas redes que se estabelecem; procurar desenvolver cada mundo do microcosmos através da transposição de conceitos entre diferentes mundos, pela reapropriação de conceitos; refundar novas bases com os velhos materiais que já existem; ver a história como um todo; compreender e sentir todas as culturas, todas as religiões, todas as filosofias, todas as ideologias; todas elas são grandiosas tarefas que nós, OS ALTERMODERNISTAS vão conseguir fundar durante este novo século. Este é o derradeiro passo que a humanidade precisa para projectar a sua consciência humana para o centro do universo - e não será de estranhar se, entretanto, surgir aí um outro conceito de universidade, porque é disso que a experiência altermodernista se trata: ter no mesmo sítio, na mesma pessoa, no mesmo local, tudo e todos, ao mesmo tempo, voltados para si e estabelecendo infinitas pontes com o mundo.

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