segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

No princípio era o Verbo, e depois...

Perguntaste-me quando começou o nosso trabalho, como e onde? Pois bem, na realidade o ponto de partida remonta à época chamada Guerra Civil. (...) O facto é que não tínhamos nenhum papel a representar antes da aparição da fotografia. Depois, veio o cinema... no princípio do século XX. Depois a rádio. A televisão. O elemento massas entrou então em cena.

(...) E esse elemento massas veio simplificar os problemas (...). Primeiro, os livros apenas interessavam a minorias, aqui e ali. Podiam permitir-se ser diferentes. O mundo era vasto. Depois o mundo encheu-se de olhos, de cotovelos, de bocas. A população dobrou, triplicou, quadruplicou. Os filmes e a rádio, os magazines, os livros, foram nivelados, normalizados sob a forma de uma espécie de pasta de bolo. Estás a perceber?

(...) Estás a ver o quadro. O homem do século XIX, com os seus cavalos, os seus cães, os seus comboios; lentidão do movimento. Depois, a aceleração, a câmara. Os livros resumidos. As condensações, os digests, os gráficos; tudo subordinado ao mote, ao fim percutante. (...) Os clássicos reduzidos para compor emissões de um quarto de hora na rádio, cortados de novo para darem extractos de dois minutos de leitura, enfim, arranjados para um resumo de dicionários de dez a doze linhas. (...) Para muita gente, (...) Hamlet era apenas um resumo de uma página, num livro que declarava: «Finalmente, todos os clássicos ao seu alcance; o seu nível de conhecimentos igual ao do seu vizinho». Estás a ver o que quero dizer? Da sala das crianças ao colégio e do colégio à sala das crianças. Eis o traçado da curva intelectual para os últimos cinco séculos.

[e depois?]

(...) As aulas tornam-se mais curtas, a disciplina é relaxada, a filosofia, a história, as línguas abandonadas, o [português] e a sua pronúncia abastardados pouco a pouco e, finalmente, quase ignorados. Vive-se no imediato. Apenas conta o trabalho e, após o trabalho, a dificuldade da escolha de uma distracção. Para quê aprender qualquer coisa, além de carregar botões, ligar comutadores, enroscar parafusos e porcas? (...) O fecho éclair substitui o botão, pois o homem não tem tempo para reflectir nem para se vestir, de manhã. Não há hora de filosofia, nem hora de melancolia. (...) Aumentem a dose de desportos para cada um, desenvolvam o espírito de equipa, de competição, e o desejo de pensar é eliminado, não? Organizem, organizem, super-organizem super-super-desportos. Multipliquem as fitas desenhadas, os filmes; o espírito tem cada vez menos apetites. A impaciência, as auto-estradas percorridas por multidões que estão aqui, ali, em todos os sítios, em parte nenhuma. Os refugiados do volante. As cidades transformam-se em albergues de automobilistas; os homens deslocam-se como nómadas seguindo as fases da Lua.

(...) Autores cheios de maus pensamentos, fechem as vossas máquinas de escrever. E eles fizeram-no. As revistas tornaram-se numa amável mistura de tapioca e baunilha e os livros [e os filmes], segundo esses danados snobs dos críticos, eram água de lavar a loiça. Não é de admirar que os livros deixem de se vender, diziam os críticos. Mas o público, sabendo o que queria, reagiu sem medo e deixou sobreviver os comic-books. E as revistas eróticas em três dimensões, naturalemnte. E (...) o governo nada teve que ver com isto. Nem um decreto, nem uma declaração ou censura, ao princípio. Não! A tecnologia, a exploração do factor massa, a pressão exercida sobre as minorias e, aí estamos, a coisa estava lançada.


de Ray Bradbury vêm os ecos do mundo de Fahrenheit 451.
Ou será do mundo em que vivemos?

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