domingo, 20 de maio de 2007

Pode ser que um dia me roubem todos estes meus escritos e os ponham a voar ao vento, pode ser que apropriem deles como se fossem a sua própria vida, pode ser que os amem e os sonhem, e os queimem de tanto os amarem, para guardar só para si as palavras que escreve, pode ser que deixem a tinta esvair-se ao sentir a água do mar, pode ser que tudo isso aconteça, desfragmentações em discos duros, inundações, fogos postos ou naturais, lava quente a escorrer de vulcões, bramidos de animais, tufões e furacões, até mesmo o aumento do nível médio das águas do mar, calores insuportáveis, secas autênticas, podem passar muitos anos ou até mesmo umas horas apenas, podem excretar em cima de tudo o que escrevi, e podem também rir-se com desprezo do que disse, podem vaiar-me e podem chamar-me nomes que nunca irei ouvir, podem cuspir-me em cima e espezinhar-me com o pó que trazem nos sapatos, podem proibir-me de lançar ao mundo novos factos e novos boatos, podem apagar-me e distrair-me, podem asfixiar-me e podem nutrir-me, podem castrar-me e podem cortar-me, podem até cegar-me, atar-me e calar-me, mas de tudo isso não haverá comparação, não haverá um único dedo a erguer-se que se compare a esta acção, a esta plena vivência de ser, a este modo de vida, a esta única maravilha que é ser, com o coração, com as mãos, com a cabeça e com os pés, não poderão calar a alma que fala e que não olha a revés, podem fazer-me tudo e tudo, e desse tudo ainda mais, mas uma coisa única não conseguirão, mesmo que se esforcem por demais, há algo que não tentarão, há algo que não poderá ser feito, não haverá tempo nem espaço nem ocasião nem dinheiro, não hão-de calar este som que ora soa, que ora soa o que há que soar, e que vai soar até que doa, mesmo que doa a quem calar, mesmo que doa sem dizer, ninguém cala o sonho ou o sonhar, e por mais vezes que se levantar, ninguém cala o que está para chegar.

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