Quando eu era aluno do secundário, uma das poucas coisas que me agradava era o modo como o programa de português estava construído. Do 10º ano ao 12º tudo fazia sentido: começava-se pelos inícios da literatura, ou do registo escrito, que está na tradição oral dos contos populares; caminhava-se então para o nascimento daquilo a que academicamente se pode chamar o registo escrito português ou galaico-português, que dança para os lados dos cancioneiros medievais com as suas cantigas para amigos, amores e escárnios; passava-se pela história da literatura como pelo contexto histórico na qual surgiu, e do qual depende, irredutivelmente, tal como a ciência e todas as outras formas de arte. Depois do grande Gil Vicente, renascia-se no gosto pela cultura grega que mostrava em Camões e em tantos outros o seu brilhantismo; passava-se, já no 11º, pelo Barroco desse gigante que é Vieira, pelo Neoclassicismo que transita das Arcádias para o nosso Bocage, caminhando inevitavelmente para a natureza do Romantismo que encontrou em Garrett sua expressão portuguesa, e sem esquecer o grande contributo de Herculano para a história nacional. Hercúleo também fora o nosso Eça com suas descrições realistas exímias, Ortigão com as suas Farpas bem cravadas na moral das consciências; e impressionando subjectivamente, o nosso Cesário que abria caminho a todo esse desenvolvimento cultural do século XX, palco de profundas transformações. Todo este passado glorioso e riquíssimo em cultura tem vindo a ser trucidado pelas políticas educativas - que tanto têm de educativo e tão pouco de instrutivo. Para ter uma noção do anacronismo que é o actual programa de português, pegue-se no 12º ano, e analise-se aquilo que é exigido decorar pelo Ministério de quem lá manda.
PROGRAMA DO 12º ANO
"Textos informativos diversos"
- WTF is this?? E o que é que isto faz aqui?!
"Textos líricos" - Fernando Pessoa ortónimo e heterónimos
poesia do século XX. modernismo. monarquia. república. ditadura
"Textos épicos e épico-literários" - Camões e Pessoa: Os Lusíadas e Mensagem
ah a Mensagem é um texto épico? Olha a grande novidade! ficava melhor se dissessem que era um texto mítico, porque é justamente isso que representa. Metemos então no mesmo saco a análise a uma obra sobre o passado, como o é a do Camões, e a análise a uma obra sobre o futuro, como o é a do Pessoa. Deve ser engraçado tentar comparar coisas que não podem ser comparadas. Dois contextos históricos completamente distintos, separados por cerca de 400 anos... Duas obras completamente diferentes.
"Textos de teatro" (de teatro ou dramáticos?) - Sttau Monteiro, Felizmente há luar!
portanto, uma peça de teatro épico no contexto de século XX; clima de oposição à ditadura salazarista que faz um paralelo com os episódios da ocupação inglesa do pós-napoleão no século XIX; tudo isto sem um fio condutor que o organize, sendo apenas uma sucessão descoordenada de momentos, personagens e ideias
"Textos narrativos" - Saramago, Memorial do Convento
que é uma narrativa também do século XX, mas contando uma história que se passa por volta da centúria de setecentos, numa linguagem completamente diferente daquilo a que estamos habituados; e mais uma vez totalmente descoordenada da contextualização histórica e de uma análise evolutiva que são a única maneira de compreender realmente uma obra...
Em jeito de balanço...
Temos, portanto:
- uma obra do século XVI inserida no Renascimento: Os Lusíadas
- uma obra do século XX que se reporta ao século XVII, Barroco: Memorial do Convento
- uma obra do século XX que se reporta ao século XIX, entre as invasões francesas e as guerras liberais: Felizmente há luar!
- uma obra do século XX entre monarquia, república e ditadura: Mensagem
e é então exigido que os professores ensinem num só ano o significado das estéticas renascentistas, que falem dos Descobrimentos, de D. João II, da estética do Barroco, de D. João V, da passarola (e inovações científicas), das invasões francesas de oitocentos, da ocupação inglesa, do absolutismo e da ditadura, da queda da monarquia, da instauração da república, da ditadura salazarista, do sebastianismo místico e do V Império, de Pessoa e dos heterónimos, do século XX e da actualidade do prémio Nobel da literatura?!?!?! O Ministério de coisa alguma deve pensar que os professores são sobre-humanos para conseguir explicar tudo isto num só ano; e que os alunos são sobre-dotados para conseguirem compreender tudo isto num só ano, e ainda por cima decorar o que irão vomitar no tão badalado Exame Nacional. Portugal é um portento, realmente! Claro que nenhum destes tópicos é explorado numa perspectiva evolutiva, apenas exposto acriticamente de um ponto de vista pseudoliterário e limitado. É isto que é a educação em Portugal, já nem sequer se toma atenção à evolução da cultura e do pensamento. Estamos enterrados em papas amorfas cada vez mais nebulosas que só podem levar ao desinteresse dos alunos por temas em que, de outro modo, poderiam tirar sublime prazer em disfrutar. Esta situação não é só estúpida, é vergonhosa; e mais vergonhosa ainda é a atitude daqueles que não fazem nada para gritar a sua indignação contra este atentado ao que resta da cultura portuguesa. Hoje tiram-nos o contexto histórico para que nos esqueçamos de tudo o que houve e de todos os erros que foram cometidos, amanhã tirar-nos-ão a liberdade de ser português em todos os múltiplos aspectos da nossa identidade única e universal.
MAS ENQUANTO HOUVER UMA VOZ A CUSPIR CONTRA AQUELES QUE QUEREM DESTRUIR A CULTURA PORTUGUESA A BATALHA TERÁ SIDO VENCIDA E A GUERRA ESTARÁ UM PASSO MAIS PRÓXIMA DA VITÓRIA
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