quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

divulgação cultural

Qual é a melhor maneira de dar cultura às pessoas? Teatro independente ou teatro comercial? Ensaios filosóficos ou escrita comercial? O que é boa cultura e o que é má cultura? Estas questões têm-me atormentado desde há algum tempo, mas parece-me que encontrei agora algumas respostas. Não há boa nem má cultura. Não existem cânones. É impossível analisar um livro de uma forma perfeitamente objectiva sem que se perca, pela análise, aquilo que faz do livro algo que vai para além de um mero conjunto de palavras. Os cânones são relativos e estão inexoravelmente dependentes das pessoas que os criam. Pessoas diferentes em ambientes culturais diferentes apontam diferentes obras como marcos da cultura. Um haiku será para um ocidental uma nova espécie de ciência hermética. As odes de Álvaro de Campos não passarão de devaneios histéricos para um budista. Não é possível construir generalizações.

Não há boa nem má cultura. Cultura é toda a criação humana que supera tanto o biológico como o psicológico. Cultura é tudo aquilo que nos permite desenvolver a imaginação, que é uma das maiores capacidades humanas. As obras podem somente medir-se na capacidade que têm de levar uma pessoa individual a desenvolver a sua imaginação, o seu pensamento abstracto. Esta medição está completamente dependente da pessoa em questão e do seu contexto cultural, tanto o social como o pessoal. Não há livros bons nem maus. Há somente livros que exercitam mais a nossa imaginação e outros que a exercitam menos, e é tudo. Há somente livros que possuem uma riqueza semântica maior e outros que possuem uma riqueza semântica menor, e é tudo. Para quem nunca tenha ouvido falar em rituais, até os livros do Paulo Coelho são bons porque exercitam a capacidade imaginativa que nos permite perceber o que é um ritual. Para quem não tem cultura suficiente para compreender o Romeu e Julieta de Shakespeare, até o West Side Story serve para perceber o que é um amor de perdição.

O grande perigo está em querer vender-se gato por lebre. Todas as críticas são visões pessoais e individuais de uma obra. O que é importante é que exista a consciência de que tudo aquilo que existe é subjectivo, individual e pessoal - em suma: de que tudo é relativo. Esse será o primeiro passo. (E só deus sabe como é difícil que as pessoas percebam isso: por motivos vários - a sociedade arreigadamente capitalista em que vivemos, o sistema de ensino castrador de pensamentos originais em que somos metidos, as quantidades industriais de publicidade a que somos sujeitos quer queiramos quer não, a estrutura fortemente hierarquizada dos conjuntos sociais em que habitamos - a maior parte das pessoas vive na ideia de que só é possível manter ordem numa sociedade pela autoridade, e de que a estabilidade do mundo depende da existência de um contexto social fixo, em que a presença da mudança equivale a uma qualquer calamidade.) O segundo passo será perceber que, como tudo é relativo a um contexto, e como não existem opiniões absolutamente correctas ou infalíveis só é possível acalmar o desassossego que esta condição nos traz pela escolha - e essa escolha requer capacidade crítica para decidir entre várias opções possíveis. O terceiro e derradeiro passo será perceber que o número de opções possíveis tende para o infinito, aumentando tanto mais quanto maior for a cultura da pessoa - isto é, quanto mais obras culturais e meios de expressão cultural essa pessoa conhecer. A melhor decisão será a decisão que tiver em conta o maior número de opções. Só um louco ou uma pessoa que não conheça a poesia portuguesa pode afirmar que Eugénio de Andrade é o maior dos poetas.

Assim, chegamos à conclusão de que a tarefa mais importante é a de dar cultura às pessoas. Esta actividade de divulgação cultural terá de ser diversificada e contínua ao longo do tempo, nunca mostrando-se dependente do percurso escolar ou laboral de uma dada pessoa. O desenvolvimento de uma consciência da importância da relatividade no mundo e o desenvolvimento de um espírito crítico devem ser, estes sim, primeiramente desenvolvidos na escola. É claro que a divulgação cultural terá sempre em mente o desenvolvimento destas duas capacidades, mas o objectivo principal está no mostrar às pessoas algo que elas desconhecem ou que nunca tinham visto de outra perspectiva.

Mas temos ainda de nos debater com um grande problema: a necessidade de manter uma actividade de divulgação cultural rentável e auto-sustentável. Se a fonte de receitas é externa, então só podemos confiar no puro mecenato para manter uma actividade. Se esta fonte de receitas não existir, então não teremos outra hipótese que escolher para divulgação cultural uma actividade que tenha a capacidade de atrair muitas pessoas. Portanto, tem de ser obrigatoriamente comercial - embora possa e deva ser sempre, e ao mesmo tempo, instrutiva. Como equilibrar estas duas necessidades? Só há uma maneira possível: criar peças culturais amplamente ricas em diferentes níveis de significação. Durante o acto de conhecer a obra, o espectador pode procurar nela uma de duas coisas: ou procura aquilo que nela há de entretenimento, e a peça cultural serve apenas como forma de divertir alguém; ou o espectador procura a verdadeira mensagem da peça, e aí ela tem um sentido muito mais importante: um sentido pedagógico, e serve como uma arma de evolução cultural humana. Equilibrando uma forma atraente com um conteúdo rico conquistam-se os dois tipos de espectadores. E exemplos de obras geniais como essas abundam: Alice no País das Maravilhas, As Aventuras de João Sem Medo, Big Fish, D. Quixote, Ensaio sobre a cegueira, O Nome da Rosa, e muitos outros.

Infelizmente, e apesar de ser uma óptima solução para a sustentabilidade das actividades de divulgação cultural, esta situação irá apenas resolver uma ínfima parte da ignorância que há no mundo; é que ainda que se atraiam os dois tipos de espectadores, o objectivo central de dar cultura a todos não é totalmente cumprido: aqueles que conseguem ler nas entrelinhas, fazem-no; mas aqueles que não o conseguem por preguiça interior ou falta de estímulo exterior, não o fazem; tudo isso serve para perpetuar o desiquilíbrio da situação em que vivemos... Haverá casos - poucos, é certo - em que certas pessoas inicialmente atraídas para a peça cultural por o que há nela de entretenimento conseguem dar o salto de consciência para o lado abstracto e semântico da mensagem: são aquelas pessoas que se desconcertam e desassossegam; e o semear da dúvida é como um bálsamo para os olhos. Para esses existe evolução - mas e que dizer dos outros? Permanecerão fundamentalmente os mesmos. A resposta continua na divulgação cultural.

Voltamos então ao problema inicial: como elevar o nível cultural de toda a gente? Se é certo que passa pela divulgação cultural, o difícil é escolher o melhor meio de transmitir cultura. A apresentação de um tema deve ser sempre o mais clara e objectiva possível, focando-se a atenção em um ou dois aspectos essenciais - aqueles que se pretendem transmitir. É muito difícil para o espectador ficar a conhecer numa única sessão vários temas que desconhece, o processo de adaptação a um novo ambiente leva o seu tempo; é por isso que as sessões devem tratar de um único tema, mas procurando sempre explorá-lo de uma forma extensiva e bem desenvolvida. Apenas isso já seria um excelente ponto de partida. Outro aspecto muito importante é o da motivação. A exposição tem de ser lógica e sequencial, é certo; mas sempre motivante, interessada e emotiva: ela tem de conseguir tocar em cada um dos espectadores. É importantíssimo que haja interacção do divulgador com os espectadores, e que os espectadores se sintam à vontade para interromper o divulgador e perguntar aquilo que for saciar a sua curiosidade tantas vezes quantas as necessárias. É preciso criar uma ligação com cada um dos espectadores, ou, pelo menos, com o conjunto de todos os espectadores que constitui aquilo a que chamamos auditório. De outra forma não é possível fazer passar a mensagem. As três vertentes da arte da retórica têm de ser consideradas com muita atenção.

4 comentários:

Peter-Plane-Pane disse...

Isso faz-me lembrar a velha questão do serviço público de televisão...

Mas depois há outras questões...

"A ignorância natural é como um fruto exóctico e deve ser conservada, sob pena de perder o viço..." - Oscar wilde

Viver da cultura sem mecenato, imediato ou mediato, parece-me impossível... Sempre o foi...

Para que uns vivam da cultura, sendo escravos dos seres mecenaticamente refinados, é necessário que outros sejam escravos destes e assim sucessivamente...

No fundo da pirâmide estão e sempre estiveram os que trabalham a terra...

No meio estão os que pagam impostos e alimentam os mecenas...

Daniel disse...

É isso. O serviço público de televisão é o que é porque tem de sustentar-se (público?! E que dizer então do privado?!...). É a economia capitalista e competitiva - em suma, darwinista - que temos. Mas há também aqui um aspecto que ainda é mais importante, e que é aquele de que o Wilde fala: as pessoas não são naturalmente ignorantes, só em condições muito cuidadas é que as pessoas se tornam ignorantes. A maior parte das pessoas é ignorante não porque seja natural ou intrinsecamente ignorante, mas porque o meio onde nasceram cuidadosamente as empurra para a ignorância. Se o meio as empurrasse para outro lado, elas tornar-se-iam naturalmente mais inteligentes - porque isso sim é que é natural. O problema é esta economia capitalista. E o grande drama é que parece não existir outra forma de economia - ou pelo menos por enquanto - capaz de nos levar até a uma era de ouro. Mas hoje em dia a tecnologia que temos já está muito avançada. A divulgação cultural de hoje faz-se com uma facilidade e a uma rapidez como ninguém pôde algum dia imaginar que fosse possível, e a internet é a prova maior de toda essa situação. E isso só pode ser motivo para rejubilar: é impossível contrariar a lei da entropia: a informação está hoje mais dispersa pelo mundo do que alguma vez já esteve, e portanto não é de admirar que comecem a surgir - por toda a parte - pessoas extremamente dotadas exactamente porque foram capazes de se cultivar por si próprias através dos meios de que dispomos. É impossível parar a degradação da ignorância que vai no mundo. E quando ela finalmente morrer, dar-se-á a primeira e única revolução que o mundo alguma vez há-de conhecer.

Peter-Plane-Pane disse...

Falas da questão de Darwin... Certo, a evolução das espécies e talves uma certa tendência para a parasitação por parte da espécie dominante...

O problema é o capitalismo, sofisticado e poderoso, tal como existe hj em dia...

Pelo modelo de Darwin, no entanto, só o aparecimento de uma nova espécie dominante o travará...

Agora a questão é: e a comida, o sustento? Já ninguém cultiva a terra... Quanto mais sofisticadas são as civilizações mais carregados estão os alimentos que comem de substâncias cancerígenas...

E se alguém tentar viver em economia de subsistência exercendo uma natural liberdade que lhe assiste?

Aí é a desgraça... Cai-lhe tudo em cima... então e o seu irs?
então quem é que o senhor pensa que é para se arrogar ao direito de ser feliz?

Queria não apanhar cancro?!?

No dia em que todos viverem da cultura, a escravatura voltará a ser instituída... Já está instituída, aliás... Os orientais terceiro mundistas produzem os cereais e morrem à fome... E nós comemos o pão...

Daniel disse...

o darwinismo é competição, tal como o capitalismo em que vivemos. Vivem os grandes, caem os fracos. E enquanto não caem, são parasitados - mas com requintes de malvadez: não são parasitados fortemente até se lhes chupar toda a energia vital, apenas até se chegar quase a esse ponto, mas mantendo-os vivos; e deixa-se que a situação continue assim perpetuamente. É a manutenção da tal ignorância que faz com que as pessoas não se revoltem contra a condição abjecta em que nasceram. Portanto, escravatura, ou diversas espécies de escravatura, existem e sempre existiram. Mas isso não quer dizer que existirão sempre - só se nós deixarmos! A questão aqui é que façamos tudo para que toda a gente possa desenvolver o seu potencial individual, para que todos possam expressar o que lhe é inato e que engrandece o mundo. Não nos podemos é esquecer de que ninguém é igual a outra pessoa, e portanto se em alguns esse potencial será cumprido pondo ideias no papel ou na tela, outros haverá que gostam é de mexer em máquinas, ou de cultivar a terra, ou de fazer cerâmica. Nem toda a gente aspira a ser um alto professor de filosofia. O que é que podemos fazer entretanto? Aproveitar o capitalismo, a internet e a publicidade para fazer passar as nossas mensagens - e mostrar o ridículo que há no resto ao mandá-lo à merda com toda a graça insultuosa de um Oscar Wilde. Poucas coisas haverá que sejam capazes de nos dar tanto prazer.