não há pior sensação no mundo do que sentir-se dentro de um supermercado. Talvez fosse melhor dizer supor-se dentro de um supermercado, porque dentro de um não é possível sentir nada. O vazio civilizacional preenche filas e filas de prateleiras com preços enganosos e cores berrantes. Toda a gente corre para comprar o mais depressa possível o produto de que tanto ouviu falar na televisão. Bombardeados como somos por estímulos que mudam dez vezes em cada dois segundos, já não ouvimos, já não vemos, já não falamos. Implantaram-nos uma televisão entre o lobo occipital e o parietal, e agora só nos movemos para onde a visão é sobrestimulada. Ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que procura. Limita-se a viver, à pressa, empurrando o carrinho pelos corredores labirínticos da modernidade. As muralhas de produtos frescos e enlatados, plastificados, engarrafados, depurados, liofilizados, desidratados, refinados e geneticamente modificados aguardam por nós, e nem precisamos de estender o braço. Todas as embalagens saltam já para o nosso carrinho, para esse abismo onde procuram desesperadamente suicidar-se para esquecer o seu destino. Mas somos humanos. Temos crias para amamentar, temos filhos para criar, comida para cozinhar, cozinhados para comer, comer para digerir, digerir para excretar. Todos os dias da nossa existência. Uma orgia de sabores sempre novos e sempre diferentes, uma orgia de sorveres e mastigares, de trincares e cortares, de preparados, ultra-congelados, super-melhorados, hiper-desinfectados, sobre-vitaminados produtos com vida própria - com vida própria!, a gritar-nos da televisão, a irromper de entre os neurónios do nosso cérebro, desse produto consumista e consumidor de eras e séculos e milénios, que traga tudo o que os olhos vêem. Rica vida, esta! A Vida Moderna em todo o seu esplendor orgiástico, de êxtases de supermercado, de comprar bocados de metafísica enlatada para servir ao pequeno-almoço, de tecnologias socializantes e de maquinismos globalizantes; A Verdadeira Vida Moderna Em TODO O Seu Esplendor;é ela o cúmulo máximo da civilização, da Nossa Civilização, do Mundo do Amanhã, Da Grande Ordem Mundial Permanente e Necessária!
Rica vida, esta. Nem um Orwell, nem um Huxley, nem um Kafka, nem sequer um Pessoa, podiam ter previsto como a Civilização Triunfante iria conquistar, em definitivo, toda o pedaço de terra habitável com o seu asfalto cinzento-chumbo. Por cima das nossas cabeças, a Modernidade pesa.
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