segunda-feira, 14 de abril de 2008

A METAMORFOSE de Franz Kafka, por Inestética



"Certa manhã, ao acordar após sonhos agitados, Gregor Samsa viu-se na sua cama, metamorfoseado num monstruoso insecto." É com esta frase que entramos no estranho e tortuoso mundo de Gregor Samsa que a companhia de teatro Inestética procurou apresentar ao público na passada semana. Longe de fazer jus ao nome, os elementos cénicos estão embuídos de um apurado sentido estético, na simplicidade e harmonia das formas escolhidas para representar a casa da família Samsa. De particular destaque no romance, e para a peça, o quarto de Gregor, um dos elementos fundamentais da trama, foi muito bem conseguido ao ser representado por um invólucro branco que mais lembrava um comprimido. Excelente metáfora da frenética recorrência a comprimidos para solucionar todos os nossos problemas (mesmo os insolúveis), o quarto enquadra-se de forma grotesca no espaço, contribuindo para criar a atmosfera kafkiana necessária à transmissão da alienação que passa por Gregor. Porém, o pobre Gregor Samsa, a personagem principal do livro - se quisermos ser fiéis à obra -, é representada com alguma frouxidão narrativa: ainda que um timbre monocórdio para a voz de Samsa resulte muito bem para demonstrar a sua apatia perante a vida e que os seus adereços sejam excelentes símbolos da carapaça de monstro que encarna, a evolução da personagem, quando é evidente pela interpretação - coisa que nem sempre acontece - , não resolve nenhum dos problemas iniciais, e a peça deixa-se cair na própria monotonia que cria. Acresce a isso o facto da interpretação de Gregor ser muito menos presente e até marcante que a interpretação da sua irmã Greta. Com grande expressividade e vivacidade, embora com alguns solavancos rítmicos, Greta consegue marcar uma forte presença na família Samsa, e tão forte ela que acaba por conquistar o título de personagem principal pouco após o seu aparecimento. Ainda que se note uma clara reverência face à obra de Kafka, em breve nos encontramos a braços com um paradoxo: por um lado, a incapacidade de Gregor para evoluir enquanto personagem na sua condição de monstro metamorfoseado, que é um contraste gritante com o livro e que não resulta nada bem; por outro lado, a fidelidade à obra é tanta que se torna excessiva porque não é capaz de inovar. Aliás, o verdadeiro problema não está na inovação ou no apuramento que é absolutamente necessário dar à obra para que esta viva enquanto peça de teatro; o que falha redondamente é exactamente o conseguir transmitir aquilo que as personagens sentem, sobretudo o que Gregor sente e pensa, e portanto caindo inúmeras vezes em longos silêncios inexpressivos ou pausas demasiado absurdas - até mesmo para uma obra esteticamente absurda! Apesar da música conseguir envolver o espectador (ainda que não o consiga transportar definitivamente para a pele da personagem mantendo o conflito interior por que ela passa), apesar de existir uma clara evolução do espaço cénico - que aliás está muito bem conseguida, engenhosa até - , as interpretações do pai e da mãe de Gregor deixam algo a desejar. Melhor do que o pai de Gregor, que utiliza um registo de voz que chega a ser infantil quando comparado com o registo do próprio Gregor, a mãe consegue transmitir em alguns momentos as suas preocupações interiores, embora tenha por vezes uma irrisória interpretação de angústia - e até mesmo uma simulação de choro tão estúpida quanto ridícula. O mais grave acontece quando nem sequer é transmitida a luta - a verdadeira luta corporal -, e as tensões que a provocam e que dela resultam entre cada um dos membros da família e Gregor, talvez excepção feita para a irmã, a única a conseguir estar o mais próximo possível daquilo a que é possível chamar genuíno. A adaptação da obra torna-se ainda pior quando a ligação entre as cenas parece sofrer de uma frouxidão narrativa e a própria peça não se preocupa em contextualizar o tema ou o desenrolar da acção: será extremamente difícil para alguém que não leu o livro conseguir compreender qual a mensagem da obra e que é tão importante - e cada vez mais - nos dias cinzentos e burocratizados que correm. Em jeito de balanço é necessário sublinhar que é completamente inadmissível que actores profissionais - se, de facto, é disso que estamos a falar - não sejam capazes, de uma maneira geral, dar a dimensão e a profundidade devidas às personagens da brilhante obra de Kafka. Mais uma vez, a interpretação, aquilo que é mais importante e de que vive a representação, acaba por ser abafada e nem um bom planeamento cénico consegue salvar uma alma que não é mais que corpo. E deve-se dizer que é lamentável que na sinopse da peça conste que Gregor se metamorfoseia num escaravelho, quando a única referência que é feita na obra original é a de "insecto" - perde-se a liberdade imaginativa do espectador que tenta imaginar que monstro estará por detrás (ou, melhor dizendo, por cima) de Gregor. Em suma, estamos perante uma peça medíocre que não nos dá muitas razões para acreditar no teatro português.

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