domingo, 20 de abril de 2008

O MARINHEIRO de Fernando Pessoa, pela Companhia de Teatro de Almada















Não é de ânimo leve que se penetra no denso e intrincado mundo de Pessoa. Labiríntico como a sua psique, situada entre o sonho e a realidade, a peça de Pessoa "O Marinheiro" transporta-nos para um lugar sem espaço, um tempo sem tempo, onde a alma conversa consigo mesma, descobrindo as ilusões que ela própria cria e inventando as realidades que porventura a imaginam a ela mesma. É com grande lucidez que num pequeno texto introdutório o encenador Alain Ollivier expõe o cerne da peça:

É preciso não nos equivocarmos sobre o sentido do drama estático. É também um traço de ironia através do qual Pessoa entende diferenciar-se radicalmente do teatro que lhe é contemporâneo e que se caracteriza (...) por uma mera habilidade de intriga desprovida de qualquer pensamento ou qualquer inspiração. Pessoa explica-se: "Chamo teatro estático àquele cujo enredo dramático não constitui acção - isto é, onde as figuras não só não agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem-se, mas nem sequer têm sentidos capazes de produzir uma acção; onde não há conflito nem perfeito enredo". (Alain Ollivier)

É exactamente por ser uma peça de teatro estático que a originalidade de Pessoa enquanto dramaturgo brilha. Mas mais ainda que a originalidade da sua concepção dramática, a mensagem transmitida, o significado por detrás do símbolo, é, acima de qualquer outro elemento, aquele que confere à peça de Pessoa a verdadeira genialidade do seu acto criador:

A reflexão de Pessoa apoia-se, evidentemente, no poder dramático da linguagem. É a invenção da linguagem que confere a sua realidade à acção dramática. Não há acção dramática sem criação de uma linguagem. Percebe-se muito claramente a proximidade de pensamento com os simbolistas franceses (...). "A intriga no teatro reside não na acção, nem na progressão e nas consequências da acção, mas sim na revelação das almas através das palavras trocadas e na criação de situações", afirma de resto Pessoa. (Alain Ollivier)

Tendo como fundamento o silêncio, fiel à obra de Pessoa, e conferindo mesmo ao silêncio o papel de personagem, elemento marcadamente presente nas inúmeras pausas que permeiam cada fala, "O Marinheiro" consegue fazer com que as palavras que são proferidas do exterior de nós mais se assemelhem a desconhecidos que nos invadem e preenchem a partir do nosso próprio interior. Com um muito interessante jogo de luzes e de ritmos, a presença da máscara - certamente o melhor elemento que simboliza toda a obra e vida de Pessoa - confere uma presença mágica, etérea mesmo, às faces supratemporais e supraespaciais das actrizes, as três veladoras, as três almas da alma. O jogo de entoações e respirações que se cria é magnífico - ainda que se compreenda que mais facilmente terá sido trabalhado, visto que estamos perante uma peça estática que não exige um trabalho de expressão corporal e posicionamento das actrizes. O facto de que as veladoras - excepção feita à terceira - são mais velhas afigura-se como essencial, já que de outra maneira dificilmente seria possível dar à palavra a intensidade dramática que ela consegue adquirir. É por isso que o discurso da terceira veladora não surge com a força das outras duas. Não obstante, estamos perante um bom trabalho e uma boa encenação. Só é pena que esta encenação não se tivesse mantido fiel à obra de Pessoa até ao fim, já que algumas das indicações que Pessoa dá ao longo do texto foram completamente eliminadas, sendo mais gritante a sua falta no final da peça, e gerando-se uma situação que não consegue apresentar uma conclusão satisfatória da essência da peça. Mas o que há verdadeiramente a lamentar é a postura do público em relação à representação. É inacreditável, chega a ser completamente insuportável e, em muitos casos, execrável, o comportamento das pessoas que estão a assistir à peça. Para além de uma falta de respeito para com o bom trabalho de actor e encenação que foi levado a cabo, é sobretudo uma falta de respeito para aqueles que querem realmente aprender alguma coisa com a mensagem que emana da dramaturgia. Um tal comportamento só pode indicar que mesmo hoje Pessoa permanece largamente incompreendido e que esse silêncio que tanto Pessoa apreciava continua a ser algo a temer e mesmo a evitar, em vez de ser aceite como o único momento de criação individual plena que de facto existe em cada um de nós.

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