sábado, 5 de abril de 2008

Sobre a inexistência do tempo

A melhor e mais clara prova de que o tempo não existe foi-nos dada pelo cinema. A existência do cinema assenta num princípio simples - que a passagem sucessiva de várias imagens consegue criar em nós a ilusão de que existe uma continuidade entre cada par delas. O cinema apenas existe porque temos capacidades perceptivas limitadas. Na verdade, o que existe realmente, são várias fotografias ou fotogramas em que determinadas figuras se encontram nesta ou naquela posição; é a sua sucessão, a passagem de umas a outras, que cria em nós a ilusão de que algo se move, de que existe movimento - e tudo isto porque o nosso cérebro não consegue processar como individuais senão umas poucas imagens por segundo. Pode muito bem ser que se passe o mesmo com toda a vida exterior que desfila perante os nossos olhos; pode ser que aquilo que vemos como movimento seja apenas a percepção que o nosso cérebro, estrutura limitada a tantos níveis, é capaz de reconstruir a partir de imagens únicas que se sucedem em cadeia. Assim sendo, a vida exterior, isto é, a vida que observamos directamente através dos nossos olhos, pode ser apenas um momento único sem tempo nem espaço onde tudo se cria e onde tudo se destrói. A ilusão da existência de uma continuidade leva-nos a crer que o tempo exista e se mova; porém, o que pode acontecer é que cada um de nós crie activamente e sucessivamente representações visuais de algo que é exterior e que, com mais dificuldade ou de uma forma menos trabalhosa, nos parece dar a ilusão de movimento quando ele não existe. Se o mundo que conhecemos não é mais que uma criação, ou uma representação, então ele está condicionado desde o momento em que se forma pelas nossas estruturas mentais àquilo que somos. Fará, portanto, e a este nível, sentido falar em algum tipo de evolução que não a darwiniana visto que esta se baseia exactamente na noção de que o tempo é algo contínuo e não descontínuo; isto é, de que os acontecimentos que se sucedem naquilo a que podemos chamar tempo apresentam uma continuidade e uma relação entre si. Assim, podemos chamar uma evolução deste tipo como criacionista - não no sentido que tem sido utilizada ao longo do tempo, referindo-se a palavra ao acto de criação que teria sido levado a cabo por Deus ou o Demiurgo; mas sim no sentido de que essa evolução é uma criação única e sucessiva do mundo onde nos movemos. Se interpretarmos o tempo como algo descontínuo, como uma série de criações descontínuas, não sobreponíveis, mas extremamente semelhantes entre si, então podemos até imaginar quais os mecanismos que possam tornar possível uma série de criações como essas. A percepção de uma continuidade entre momentos únicos e descontínuos terá a sua origem nas nossas próprias estruturas mentais - sobretudo nas suas limitações perceptivas - , e sendo as percepções que levam à construção das representações, ou criações, podemos dizer que a criação tem como causa primeira a nossa própria natureza. Ora, a percepção que podemos ter daquilo que nos é exterior depende da consciência que temos, maior ou menor, daquilo que nos rodeia; depende da capacidade que temos em interpretar os estímulos daquilo que nos é exterior. Assim, podemos dizer de igual modo que as criações que estruturamos têm como causa anterior o nosso maior ou menor grau de consciência perante aquilo que nos é exterior. É deste modo que o maior e único agente da evolução que vivenciamos somos nós próprios. Cada um de nós é o palco onde tudo acontece. Mas, nesse caso, como explicar a mudança que se verifica de umas criações a outras? Por um lado, não sabemos se aquilo que nos é exterior não tem, também, capacidade de criar tal como a nossa própria consciência. A ser assim, podemos supor que a mudança que parecemos adivinhar no mundo se deve à mudança sucessiva de construções que fabricamos ao percepcionar estímulos exteriores que mudam sucessivamente devido a um acto de criação. Por outro lado, se essa criação naquilo que nos é exterior não ocorre continuamente, ou pelo menos se não ocorre sempre que se cria algo, só podemos explicar a existência de criações sucessivas por nós tornadas reais se cada criação dessas for ilusória, ou perecível - em suma, não permanente. Se ela não possui uma verdadeira substância, e se o seu fim último é a desagregação, então não só a criação existe devido à existência de estímulos exteriores como, ainda por cima, é sucessivamente necessária para que possamos estruturar esses estímulos numa referência que torne possível alguma espécie de compreensão - ainda que mínima e imperfeita - daquilo que nos rodeia. Se assim acontece, então só podemos concluir que é forçosamente necessário à nossa estrutura mental compreender o que a rodeia; e esse acto de criação é o mecanismo pelo qual a nossa consciência ou inteligência organiza representações desse desconhecido que a rodeia.


Tratado Sobre o Tempo e Sobre o Espaço

1 comentário:

Victor Mesquita disse...

Uma inteligente e corajosa defenição, a qual prova que a estructura do nosso erroneamente chamado pensamento, é o cadilho gerador da ilusão de temporalidade. Se fora da mente o tempo não existe,então jamais houve princípio da criação. Heráclito sabia o que dizia. Aristóteles ajudou sim a trocar as voltas à verdade. Mais tarde ou mais cedo a mecânica quântica fará que a questão do tempo não passe de mais uma discussão sobre o sexo dos anjos.
Victor Mesquita