sábado, 6 de setembro de 2008

Afinal, quem era realmente Pessoa?

(...) e, dos que de perto literariamente me cercam, você sabe bem que (por superiores que sejam como artistas) como almas, propriamente, não contam, não tendo nenhum deles a consciência (que em mim é quotidiana) da terrível importância da Vida, essa consciência que nos impossibilita de fazer arte meramente pela arte, e sem a consciência de um dever a cumprir para com nós próprios e para com a humanidade.

(...)

Em ninguém que me cerca eu encontro uma atitude, para com a vida que bata certo com a minha íntima sensibilidade, com as minhas aspirações e ambições, com tudo quanto constitui o fundamental e o essencial do meu íntimo ser espiritual. Encontro, sim, quem esteja de acordo com actividades literárias que são apenas dos arredores da minha sinceridade. E isso não me basta. De modo que, à minha sensibilidade cada vez mais profunda, e à minha consciência cada vez maior da terrível e religiosa missão que todo o homem de génio recebe de Deus com o seu génio, tudo quanto é futilidade literária, mera arte, vai gradualmente soando cada vez mais a oco e a repugnante. Pouco a pouco, mas seguramente, no divino cumprimento íntimo de uma evolução cujos fins me são ocultos, tenho vindo erguendo os meus propósitos e as minhas ambições cada vez mais à altura daquelas qualidades que recebi. Ter uma acção sobre a humanidade, contribuir com todo o poder do meu esforço para a civilização vêm-se-me tornando os graves e pesados fins da minha vida. E, assim, fazer arte parece-me cada vez mais importante cousa, mais terrível missão - dever a cumprir arduamente, monasticamente, sem desviar os olhos do fim criador de civilização de toda a obra artística. E por isso o meu próprio conceito puramente estético da arte subiu e dificultou-se; exijo agora de mim muita mais perfeição e elaboração cuidada. Fazer arte rapidamente, ainda que bem, parece-me pouco. Devo à missão que me sinto uma perfeição absoluta no realizado, uma seriedade integral no escrito.

Passou de mim a ambição grosseira de brilhar por brilhar, e essa outra, grosseiríssima, e de um plebeísmo artístico insuportável, de querer épater. Não me agarro já à ideia do lançamento do Interseccionismo com ardor ou entusiasmo algum. É um ponto que neste momento analiso e reanaliso a sós comigo. Mas, se decidir lançar essa quase blague, será já, não a quase blague que seria, mas outra cousa. (...) A blague só um momento, passageiramente, a um mórbido período transitório, de grosseria (felizmente incaracterística), me pode agradar ou atrair. Será talvez útil - penso - lançar essa corrente como corrente, mas não com fins meramente artísticos, mas, pensando esse acto a fundo, como uma série de ideias que urge atirar para a publicidade para que possam agir sobre o psiquismo nacional, que precisa trabalhado e percorrido em todas as direcções por novas correntes de ideias e emoções que nos arranquem à nossa estagnação. Porque a ideia patriótica, sempre mais ou menos presente nos meus propósitos, avulta agora em mim; e não penso em fazer arte que não medite fazê-lo para erguer alto o nome português através do que eu consiga realizar. É uma consequência de encarar a sério a arte e a vida. Outra atitude não pode ter para com a sua própria noção do dever quem olha religiosamente para o espectáculo triste e misterioso do Mundo. (...)


Fernando Pessoa, 26 anos, em janeiro de 1915, numa belíssima carta a Armando Côrtes-Rodrigues sintetiza, porventura por meio de premonição, aquilo que irá ser toda a sua vida. Está na altura dos críticos abrirem os olhos: Pessoa abdicou de tudo o que podia ter tido em vida não para escrever a obra que tinha dentro dele, mas para SER aquilo que tinha dentro dele, para DAR de si aos outros, para contribuir para o avanço da humanidade sendo e sentindo diversamente tudo com o objectivo de que, falando de maneiras diversas a mesma verdade, conseguiria mais facilmente chegar a todos no seu singular gosto metafísico que lhes permite, pelo seu próprio caminho individual, alcançar a transcendência. Embora atraído a princípio por sofisticações artísticas sem substância, Pessoa as repudiou a todas e escolheu o caminho mais alto que um homem pode escolher: o de dar a sua vida para, pelos seus escritos, mostrar aos outros o caminho para a libertação de todo o sofrimento. Vemos em Caeiro a aceitação e a imersão na natureza de que todos fazemos parte; vemos em Reis a serenidade budista de não nos deixarmos perturbar por aquilo que nos acontece no mundo; vemos em Campos qual o trágico fim para toda a sociedade assente na indústria e no capitalismo; e podemos ver ainda em Soares o gosto pela reflexão filosófica que pretende analisar o real para dele extrair as suas leis essenciais. A Missão de Pessoa, pois que de verdadeira Missão se tratava, era com as pessoas - não as que com ele e nele próprio habitavam, mas com toda a humanidade: procurar livrar a humanidade dos seus sofrimentos, deixar os outros nus perante aquilo que são, firmar mil métodos para chegar à meta; e, enfim, trabalhar incansavelmente para que a revolução anarquista aconteça: para que cada homem não possa ter outra função no mundo que ser somente tudo aquilo que nasceu cumprindo-se e celebrando-se no real quotidiano da sua vida. Elevar a vida, fazendo descer o sonho ao real. Fazer da Terra o Reino de Deus.

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