quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Quer isto dizer, em suma, que somos ordinariamente injustos para com os nossos contemporâneos. É natural e humano que o sejamos, porque a sua obra, visto que decorre perante nós, nos é visível como pormenores, invisível - ainda que já esteja completa - como conjunto; porque para ela não foi ainda promulgado o decreto régio da Tradição, da qual todos vivemos súbditos, e pela qual sabemos que Shakespeare é grande já antes de o ler, e que Homero é grande sem nunca o podermos ler; porque, enfim, e não olhando já à intromissão de elementos naturais mas extra-críticos como a aversão ou a inveja, vivemos na mesma época que o autor, sofremos as mesmas influências que o autor, somos em certo modo o autor, e assim a nossa crítica mais desinteressada terá sempre os defeitos inevitáveis da autocrítica.

O verificar, porém, que somos ordinariamente injustos para com os nossos contemporâneos, e que é natural e humano que o sejamos, não quer dizer que não devamos esforçar-nos, quanto em nós caiba, para o não ser. É essa a atitude moral, pois a moral não é mais que uma correcção artificial da natureza. Efectuaremos esse intento se, conhecendo a nossa incompetência para sentirmos as obras de um autor como conjunto, nos dispusermos a considerar cada obra como conjunto e totalidade, como a única do seu autor, como de um autor que não sabemos quem seja. Assim nos aproximaremos de um vago arremedo de justiça.

Fernando Pessoa

2 comentários:

ricardo disse...

...sem comentários!...

Daniel disse...

Quantos Pessoas andaram por essas ruas de Lisboa, em escritórios da Baixa ou fora dela, a criar desconhecidos, a serem génios-para-si-mesmos, a empregar todas as suas forças na evolução da humanidade?