sábado, 31 de março de 2007
Poema do adeus à pressa
Benvinda ao mundo dos adultos
já podes mentir à vontade
ninguém nota, na verdade
gostam mais de espasmos loucos
do que plena sinceridade
senta-te aqui, com humildade
a pensar nos teus desgostos
que o problema dessa idade
é já ter ouvidos moucos
deleita-te com o alcançado
mais aquele que ficou distante
só amor hás-de ter ao lado
o mais pleno inconstante
mas se esqueces bem depressa
o tudo que te deram
não te esquecerás desta
a data que fizeste andar à pressa
foi a do esquecimento
perdeste aqui este amigo
e não mais dele farás peça
falar? só mudo vento
não há idade p'ra cair nessa
já podes mentir à vontade
ninguém nota, na verdade
gostam mais de espasmos loucos
do que plena sinceridade
senta-te aqui, com humildade
a pensar nos teus desgostos
que o problema dessa idade
é já ter ouvidos moucos
deleita-te com o alcançado
mais aquele que ficou distante
só amor hás-de ter ao lado
o mais pleno inconstante
mas se esqueces bem depressa
o tudo que te deram
não te esquecerás desta
a data que fizeste andar à pressa
foi a do esquecimento
perdeste aqui este amigo
e não mais dele farás peça
falar? só mudo vento
não há idade p'ra cair nessa
Cerromaior
Em Cerromaior nasci.
Depois, quando as forças deram
para andar, desci ao largo.
Depois, tomei os caminhos
que havia e mais outros que
depois desses eu sabia.
E tanto já me afastei
dos caminhos que fizeram,
que de vós todos perdido
vou descobrindo esses outros
caminhos que só eu sei.
Manuel da Fonseca
Depois, quando as forças deram
para andar, desci ao largo.
Depois, tomei os caminhos
que havia e mais outros que
depois desses eu sabia.
E tanto já me afastei
dos caminhos que fizeram,
que de vós todos perdido
vou descobrindo esses outros
caminhos que só eu sei.
Manuel da Fonseca
sexta-feira, 30 de março de 2007
quinta-feira, 29 de março de 2007
a única missão verdadeiramente válida não é a elaboração de propostas exequíveis. Devem ser lançadas antes todas as utopias que a que a imaginação consiga aceder. O mundo avança é por aquilo que se sonha, e não por aquilo que se faz. As pessoas avançam por aquilo que sonham, e não por aquilo que fazem. E como o mundo é feito pelas pessoas, só pode avançar por aquilo que se sonha. Na realidade, só se avança fazendo, mas só se faz se já se tiver sonhado muito antes. Por um lado, o sonho voa sempre à frente do fazer, por outro lado não é possível fazer imediatamente tudo aquilo que se sonha, e portanto devemos subordinar o fazer ao sonho, e não o sonho ao fazer. O sonho é que empurra o fazer, e não o contrário. Portanto, não devemos temer qualquer utopia, por mais inacessível que esta nos pareça. Quanto mais inacessível andar a utopia, isto é, quanto mais longe for a utopia, e quanto mais fugir ao fazer, mais o fazer se quererá unir a ela. Há uma qualquer atracção irresistível, força gravítica, curva no espaço-tempo ou interacção electromagnética que puxa o fazer para ao pé do sonho. E como uma corda elástica que se estende até não poder mais, assim o sonho põe à prova o fazer apenas para que este se lhe junte mais depressa. Quanto maior o fluxo, maior o refluxo; quanto maior a distância, maior a proximidade. A genialidade é possuir uma mola tão grande e tão forte que, mal nasce o sonho, tenha vindo ele de onde for, logo o fazer a ele se junta. E, posto isto, está a evolução do mundo explicada.
segunda-feira, 26 de março de 2007
a metafísica do ser-sonho
só se faz pensando,
só se pensa sonhando,
só se sonha imaginando,
e só se imagina sendo.
Se não se é primeiro, não se é nada.
só se pensa sonhando,
só se sonha imaginando,
e só se imagina sendo.
Se não se é primeiro, não se é nada.
pode ser que um dia
lá longe no tempo
sejam capazes de ver na dor
mais que o horrível sofrimento
pode ser que contemplem
e que arranjem tempo
para o que é grandioso
para o que nasce no momento
pode ser que um dia
leiam o que vou escrevendo
pode ser que amem e que chorem,
que aprendam e que se comovam,
que pensem e se libertem
e deixem fluir o pensamento
para que finde este vazio extremo
o vazio de amar sem tempo
lá longe no tempo
sejam capazes de ver na dor
mais que o horrível sofrimento
pode ser que contemplem
e que arranjem tempo
para o que é grandioso
para o que nasce no momento
pode ser que um dia
leiam o que vou escrevendo
pode ser que amem e que chorem,
que aprendam e que se comovam,
que pensem e se libertem
e deixem fluir o pensamento
para que finde este vazio extremo
o vazio de amar sem tempo
Bebe o que puderes enquanto é tempo
e empanturra-te disso mesmo
aquilo que não enche a alma
deixa o corpo ficar pesado,
mudo e lento
e quando olhares para isso,
para o que fizeste
e para o que deixaste por fazer
aí já serás só pó selvagem
cadáver carcomido
será o fim da viagem
e não terás vivido
mas se ouves o que digo
então escuta-o bem
para o céu, só as asas
as asas que o amor contém
e se é mesmo isso que queres
então só pedes castigo
as asas são véus de penas
tudo o resto é contigo
e empanturra-te disso mesmo
aquilo que não enche a alma
deixa o corpo ficar pesado,
mudo e lento
e quando olhares para isso,
para o que fizeste
e para o que deixaste por fazer
aí já serás só pó selvagem
cadáver carcomido
será o fim da viagem
e não terás vivido
mas se ouves o que digo
então escuta-o bem
para o céu, só as asas
as asas que o amor contém
e se é mesmo isso que queres
então só pedes castigo
as asas são véus de penas
tudo o resto é contigo
quarta-feira, 21 de março de 2007
segunda-feira, 19 de março de 2007
Ao Gnóstico I
o problema é só pensar em errar
no erro, e no que se errou
quando também se acertou
o erro, se existe, existe em nós
o certo, se é, então é tudo
esta é a diferença entre os que erram
e aqueles que não podem errar
cada um vê aquilo que é
e cada um é aquilo que sente
por isso é feito o mundo de sensações
todas diferentes, e todas iguais
para que elas nos façam errar e acertar
tantas vezes e com tanta força
até nos mostrarem a porta para dentro
no erro, e no que se errou
quando também se acertou
o erro, se existe, existe em nós
o certo, se é, então é tudo
esta é a diferença entre os que erram
e aqueles que não podem errar
cada um vê aquilo que é
e cada um é aquilo que sente
por isso é feito o mundo de sensações
todas diferentes, e todas iguais
para que elas nos façam errar e acertar
tantas vezes e com tanta força
até nos mostrarem a porta para dentro
a vida dá-nos aquilo que precisamos
no instante em que não esperamos
e o artista vê sempre mais longe no tempo
porque o tempo para ele não existe
só o momento
por isso ninguém lhe compreende
o fingir na mente
só o que os outros vão mentindo
- que é o que ele não sente
e assim vou sentindo,
tendo sempre presente
que aquilo que começo
como aquilo que findo
é sempre diferente
no instante em que não esperamos
e o artista vê sempre mais longe no tempo
porque o tempo para ele não existe
só o momento
por isso ninguém lhe compreende
o fingir na mente
só o que os outros vão mentindo
- que é o que ele não sente
e assim vou sentindo,
tendo sempre presente
que aquilo que começo
como aquilo que findo
é sempre diferente
domingo, 18 de março de 2007
sabes, em boa verdade
foi melhor assim
deixei a vida correr
ela o mostrou em mim
e nada tive a perder
sabes, foi assim
e não arrependo o instante
vivi o que vivi
chama-me inconstante
não fui eu que perdi
e o vento a dar-me na idade
navega-me para o outro lado
mas digo-te em boa verdade
vivi o dobro
e sofri metade
se há coisa que não existe é o passado
foi melhor assim
deixei a vida correr
ela o mostrou em mim
e nada tive a perder
sabes, foi assim
e não arrependo o instante
vivi o que vivi
chama-me inconstante
não fui eu que perdi
e o vento a dar-me na idade
navega-me para o outro lado
mas digo-te em boa verdade
vivi o dobro
e sofri metade
se há coisa que não existe é o passado
não me desagrada nada o estar sozinho
estar sozinho é não ter a multidão atrás
e poder pensar à vontade
ou não pensar, e ser só sentir
por isso, quando dizem
que não gostam de estar sozinhos
eu me rio
como os deuses se riem
de quem quer fugir ao seu destino
pensando para si outro
e não o único que é verdadeiro
estar sozinho é não ter a multidão atrás
e poder pensar à vontade
ou não pensar, e ser só sentir
por isso, quando dizem
que não gostam de estar sozinhos
eu me rio
como os deuses se riem
de quem quer fugir ao seu destino
pensando para si outro
e não o único que é verdadeiro
sábado, 17 de março de 2007
a carta que nunca verás
esta é a carta que nunca verás.
Nunca saberás o que foste para mim,
nem aquilo que poderias ter sido.
A esperança morreu antes de ser parida do meu ventre
E tu dóis-me como as lombrigas das fezes
que bóiam na latrina
Nunca quiseste que houvesse algo, para ti
o nada era a conversa de tudo
e na inexistência do primeiro passo
na fugacidade das tocas em que te escondias
não houve tempo para o risco de vir cá para fora
e cheirar o sol no céu azul, e
as árvores e as ervas
o que passou, se algo havia, foi com o vento
para os abismos absurdos do esquecimento
e tu permaneceste na tua cama fria
a desfiar as contas que vais tecendo
como se fosse frio esse vento que passa
mas não fica
foste a indiferença do bater do relógio
e a possibilidade de um mundo anterior à dor
mas quiseste escolher as tuas contas de plástico e papel
e emoldurá-las nos pescoços cinzentos
das horas que o pêndulo bate
a tua torre continua selada por dentro
e nos teus véus nevoeiro das esquinas
não sabes o que é sentir o pássaro na cabeça
nem o que é a liberdade do pássaro
quando o soltam da gaiola
és igual a tantas outras que vão ficando sem fazer
tecendo à luz do dia cardos e rosas
que o espelho reflecte em naturezas partidas
e mortas
como a carcaça podre de um cão lazarento
mas se não te falo
não é porque não goste do espelho
das contas, do rio que passa, do fio que teces
é só porque nessa tua modorra me aborreces
como a velha que de tão frágil morreu em nova
como o burro que não passou a ponte
ou a pomba que nunca usou as asas
és mais uma folha vencida pelo Outono
que voou para longe e já não alimenta
a árvore
ou uma metade de coisa
de que já se esqueceu há muito
e que já não vive porque ninguém pensa nela
escrevo para mim, para que saibas tu
que nunca verás a tinta destas letras
e a textura destas palavras
que ficará a sombra do prédio já há muito
abandonado
como a poça de água esquecida
num beco fugidio
e que para mim não foste mais que um sonho
que se quebrou quando se acordou a meio
pela mão do despertador que tocou
fora de horas
e assim viverás o teu destino,
e eu o meu
na lua das coisas que não voltam
a remoer o já digerido
mas pudesses tu ver apenas a parte que escrevo
então perceberias o caminho que deixaste
para trás
talvez se acendesse a vela da nau valente
e a candeia pudesse guiar
na noite escura
talvez, sob ela, as contas parecessem lascadas
e os pescoços deixassem de ser exangues
mas aí tu já serias outra, e
não a mesma
serias não o sonho que sonhado não fora
mas apenas o abismo que nunca se mostra
o mesmo
e querendo fazer correr o rio para trás
eu te diria
- disso ninguém é capaz
mas se pensas que sou eu
esse monte amargo de desgostos mal sofridos
então não vês o eu que sou
e respiro
mas apenas o reflexo da imagem
que o teu eu tem de mim
e que sem me conhecer me julga e me finda
ao achar que ficou tudo dito
e se as águas ficaram presas
por não conseguirem chegar ao mar
lembra-te ao menos disto:
foste tu que não as fizeste chegar
deleita-te agora com o rio que secou
nas tuas mãos
se ficaste à espera do comboio que não veio
então esqueces-te das vezes que o comboio passou
e tu não o apanhaste
porque tiveste o bilhete certo apertado
entre as mãos
e nunca o chegaste a usar
por achar que, se as abrisses, ele podia fugir
para longe
e assim há-de permanecer a tua vida
o ensejo varrido para debaixo do tapete
à espera que alguém o carregue e leve
para arejar
mas que de tão pesado nunca sai
do seu lugar
é o vazio da inexistência do sonho
um livro aberto que comeu as próprias folhas
Nunca saberás o que foste para mim,
nem aquilo que poderias ter sido.
A esperança morreu antes de ser parida do meu ventre
E tu dóis-me como as lombrigas das fezes
que bóiam na latrina
Nunca quiseste que houvesse algo, para ti
o nada era a conversa de tudo
e na inexistência do primeiro passo
na fugacidade das tocas em que te escondias
não houve tempo para o risco de vir cá para fora
e cheirar o sol no céu azul, e
as árvores e as ervas
o que passou, se algo havia, foi com o vento
para os abismos absurdos do esquecimento
e tu permaneceste na tua cama fria
a desfiar as contas que vais tecendo
como se fosse frio esse vento que passa
mas não fica
foste a indiferença do bater do relógio
e a possibilidade de um mundo anterior à dor
mas quiseste escolher as tuas contas de plástico e papel
e emoldurá-las nos pescoços cinzentos
das horas que o pêndulo bate
a tua torre continua selada por dentro
e nos teus véus nevoeiro das esquinas
não sabes o que é sentir o pássaro na cabeça
nem o que é a liberdade do pássaro
quando o soltam da gaiola
és igual a tantas outras que vão ficando sem fazer
tecendo à luz do dia cardos e rosas
que o espelho reflecte em naturezas partidas
e mortas
como a carcaça podre de um cão lazarento
mas se não te falo
não é porque não goste do espelho
das contas, do rio que passa, do fio que teces
é só porque nessa tua modorra me aborreces
como a velha que de tão frágil morreu em nova
como o burro que não passou a ponte
ou a pomba que nunca usou as asas
és mais uma folha vencida pelo Outono
que voou para longe e já não alimenta
a árvore
ou uma metade de coisa
de que já se esqueceu há muito
e que já não vive porque ninguém pensa nela
escrevo para mim, para que saibas tu
que nunca verás a tinta destas letras
e a textura destas palavras
que ficará a sombra do prédio já há muito
abandonado
como a poça de água esquecida
num beco fugidio
e que para mim não foste mais que um sonho
que se quebrou quando se acordou a meio
pela mão do despertador que tocou
fora de horas
e assim viverás o teu destino,
e eu o meu
na lua das coisas que não voltam
a remoer o já digerido
mas pudesses tu ver apenas a parte que escrevo
então perceberias o caminho que deixaste
para trás
talvez se acendesse a vela da nau valente
e a candeia pudesse guiar
na noite escura
talvez, sob ela, as contas parecessem lascadas
e os pescoços deixassem de ser exangues
mas aí tu já serias outra, e
não a mesma
serias não o sonho que sonhado não fora
mas apenas o abismo que nunca se mostra
o mesmo
e querendo fazer correr o rio para trás
eu te diria
- disso ninguém é capaz
mas se pensas que sou eu
esse monte amargo de desgostos mal sofridos
então não vês o eu que sou
e respiro
mas apenas o reflexo da imagem
que o teu eu tem de mim
e que sem me conhecer me julga e me finda
ao achar que ficou tudo dito
e se as águas ficaram presas
por não conseguirem chegar ao mar
lembra-te ao menos disto:
foste tu que não as fizeste chegar
deleita-te agora com o rio que secou
nas tuas mãos
se ficaste à espera do comboio que não veio
então esqueces-te das vezes que o comboio passou
e tu não o apanhaste
porque tiveste o bilhete certo apertado
entre as mãos
e nunca o chegaste a usar
por achar que, se as abrisses, ele podia fugir
para longe
e assim há-de permanecer a tua vida
o ensejo varrido para debaixo do tapete
à espera que alguém o carregue e leve
para arejar
mas que de tão pesado nunca sai
do seu lugar
é o vazio da inexistência do sonho
um livro aberto que comeu as próprias folhas
sexta-feira, 16 de março de 2007
às vezes, quando olho para a beleza da infância
e recordo essa tristeza que é recordar algo que já perdemos há muito
não se pode dar em mim menos que uma nostalgia amarga
de um fruto amadurecido que não teve tempo de se mostrar verde
de um desconhecimento do sítio para onde vão as coisas doces
e o sorriso das crianças numa manhã de Inverno
não sei o que é, nem sei o que sou
só sei que o fui
um dia
e recordo essa tristeza que é recordar algo que já perdemos há muito
não se pode dar em mim menos que uma nostalgia amarga
de um fruto amadurecido que não teve tempo de se mostrar verde
de um desconhecimento do sítio para onde vão as coisas doces
e o sorriso das crianças numa manhã de Inverno
não sei o que é, nem sei o que sou
só sei que o fui
um dia
quinta-feira, 15 de março de 2007
terça-feira, 13 de março de 2007
Toda a sociedade está dentro de mim
Fazer qualquer coisa ao contrário do que todos fazem é quase tão mau como fazer qualquer coisa porque todos a fazem. Mostra uma igual preocupação com os outros, uma igual consulta da opinião deles - característica certa da inferioridade absoluta. Abomino por isso a gente como Oscar Wilde e outros que se preocupam com seres imorais ou infames, e com o impingir paradoxos e opiniões delirantes. Nenhum homem superior desce até dar à opinião alheia tal importância que se preocupe em contradizê-la.
Para o homem superior não há outros. Ele é o outro de si próprio. Se quer imitar alguém, é a si próprio que procura imitar. Se quer contradizer alguém, é a si mesmo que busca contradizer. Procura ferir-se, a si próprio, no que de mais íntimo tem... faz partidas às suas próprias opiniões, tem longas conversas cheias de desprezo e com as sensações que sente. Todo o homem que há sou Eu. Toda a sociedade está dentro de mim. Eu sou os meus melhores amigos e os meus verdadeiros inimigos. O resto - o que está lá fora - desde as planícies e os montes até às gentes - tudo isso não é senão paisagem...
Fernando Pessoa
Para o homem superior não há outros. Ele é o outro de si próprio. Se quer imitar alguém, é a si próprio que procura imitar. Se quer contradizer alguém, é a si mesmo que busca contradizer. Procura ferir-se, a si próprio, no que de mais íntimo tem... faz partidas às suas próprias opiniões, tem longas conversas cheias de desprezo e com as sensações que sente. Todo o homem que há sou Eu. Toda a sociedade está dentro de mim. Eu sou os meus melhores amigos e os meus verdadeiros inimigos. O resto - o que está lá fora - desde as planícies e os montes até às gentes - tudo isso não é senão paisagem...
Fernando Pessoa
O homem é um animal irracional
1. O homem é um animal irracional, exactamente como os outros. A única diferença é que os outros são animais irracionais simples, o homem é um animal irracional complexo. É esta a conclusão que nos leva a psicologia científica, no seu estado actual de desenvolvimento. O subconsciente, inconsciente, é que dirige e impera, no homem como no animal. A consciência, a razão, o raciocínio são meros espelhos. O homem tem apenas um espelho mais polido que os animais que lhe são inferiores.
2. Sendo assim, toda a vida social procede de irracionalismos vários, sendo absolutamente impossível (excepto no cérebro dos loucos e dos idiotas) a ideia de uma sociedade racionalmente organizada, ou justiceiramente organizada, ou, até, bem organizada.
3. A única coisa superior que o homem pode conseguir é um disfarce do instinto, ou seja o domínio do instinto por meio de instinto reputado superior. Esse instinto é o instinto estético. Toda a verdadeira política e toda a verdadeira vida social superior é uma simples questão de senso estético, ou de bom gosto.
4. A humanidade, ou qualquer nação, divide-se em três classes sociais verdadeiras: os criadores de arte; os apreciadores de arte; e a plebe. As épocas maiores da humanidade são aquelas em que sobressaem os criadores de arte, mas não se sabe como se realizam essas épocas, porque ninguém sabe como se produzem homens de génio.
5. Toda a vida e história da humanidade é uma coisa, no fundo, inteiramente fútil, não se percebe para que há, e só se percebe que tem que haver.
6. A plebe só pode compreender a civilização material. Julgar que ter automóvel é ser feliz é o sinal distintivo do plebeu.
O homem não sabe mais que os outros animais; sabe menos. Eles sabem o que precisam saber. Nós não.
Fernando Pessoa
2. Sendo assim, toda a vida social procede de irracionalismos vários, sendo absolutamente impossível (excepto no cérebro dos loucos e dos idiotas) a ideia de uma sociedade racionalmente organizada, ou justiceiramente organizada, ou, até, bem organizada.
3. A única coisa superior que o homem pode conseguir é um disfarce do instinto, ou seja o domínio do instinto por meio de instinto reputado superior. Esse instinto é o instinto estético. Toda a verdadeira política e toda a verdadeira vida social superior é uma simples questão de senso estético, ou de bom gosto.
4. A humanidade, ou qualquer nação, divide-se em três classes sociais verdadeiras: os criadores de arte; os apreciadores de arte; e a plebe. As épocas maiores da humanidade são aquelas em que sobressaem os criadores de arte, mas não se sabe como se realizam essas épocas, porque ninguém sabe como se produzem homens de génio.
5. Toda a vida e história da humanidade é uma coisa, no fundo, inteiramente fútil, não se percebe para que há, e só se percebe que tem que haver.
6. A plebe só pode compreender a civilização material. Julgar que ter automóvel é ser feliz é o sinal distintivo do plebeu.
O homem não sabe mais que os outros animais; sabe menos. Eles sabem o que precisam saber. Nós não.
Fernando Pessoa
Solilóquios com o vazio I
Como é que uma tradição se torna moderna sem deixar de ser uma tradição?
Tem que se dar tanto espaço à tradição como à crítica. A crítica permite depurar aquilo que podemos receber do exterior, isto é, os fenómenos que chegam até nós. A tradição permite que escolhamos onde queremos criticar e onde queremos aceitar, isto é, onde impera a escolha, de entre as informações que temos, e onde impera a dúvida, de entre o que não sabemos. Mas para quem pergunta e questiona e duvida de tudo aquilo que pode conhecer, só pode surgir inexoravelmente uma resposta: não sei. E como há sempre muito mais perguntas que respostas, porque as perguntas caminham sempre à frente das respostas, então há sempre uma margem para a escolha, há sempre uma margem para o subjectivo e para a tradição. A ciência não é capaz de dar resposta a todas as perguntas que fazemos, pelo menos por agora, ou pelo menos enquanto a ciência que existe for igual àquela que nós hoje conhecemos. Se porventura se arranjar uma forma de unir a ciência à tradição, então poderemos pôr em causa quando achamos que algo não está suficientemente esclarecido, e poderemos aceitar aquilo que escolhemos ser parte de nós. E convém lembrar que, muitas vezes, partimos de um pressuposto absolutamente não científico e que é mais uma tentativa para objectivar algo que é intrinsecamente subjectivo: assumimos que nós, seres pensantes, existimos na realidade e que são verdadeiras as conclusões que podemos retirar a partir dos artifícios do nosso pensamento, que é coisa que ninguém até hoje provou por qualquer meio ser verdade, e muito menos por uma matemática.
Tem que se dar tanto espaço à tradição como à crítica. A crítica permite depurar aquilo que podemos receber do exterior, isto é, os fenómenos que chegam até nós. A tradição permite que escolhamos onde queremos criticar e onde queremos aceitar, isto é, onde impera a escolha, de entre as informações que temos, e onde impera a dúvida, de entre o que não sabemos. Mas para quem pergunta e questiona e duvida de tudo aquilo que pode conhecer, só pode surgir inexoravelmente uma resposta: não sei. E como há sempre muito mais perguntas que respostas, porque as perguntas caminham sempre à frente das respostas, então há sempre uma margem para a escolha, há sempre uma margem para o subjectivo e para a tradição. A ciência não é capaz de dar resposta a todas as perguntas que fazemos, pelo menos por agora, ou pelo menos enquanto a ciência que existe for igual àquela que nós hoje conhecemos. Se porventura se arranjar uma forma de unir a ciência à tradição, então poderemos pôr em causa quando achamos que algo não está suficientemente esclarecido, e poderemos aceitar aquilo que escolhemos ser parte de nós. E convém lembrar que, muitas vezes, partimos de um pressuposto absolutamente não científico e que é mais uma tentativa para objectivar algo que é intrinsecamente subjectivo: assumimos que nós, seres pensantes, existimos na realidade e que são verdadeiras as conclusões que podemos retirar a partir dos artifícios do nosso pensamento, que é coisa que ninguém até hoje provou por qualquer meio ser verdade, e muito menos por uma matemática.
quantas vezes será preciso dizer - é poesia aquilo que é realmente significante, aquilo que tem um significado, aquilo que realmente tem profundidade. Que profundidade tem um ribeiro? Uma lagoa, isso sim, isso é que é algo profundo! O ribeiro apenas corre, bem ou mal, consoante o caudal de água. O lago, faça chuva ou faça vento, permanece sempre lá.
não se deve ter medo algum de dizer uma palavra, seja ela qual for. Por exemplo, mística. Devemos dizer mística tantas vezes até que a palavra se nos deixe de parecer obscura ou obscurantista. Por isso, digamos todos: mística, mística, mística. Mas também vale não a repetir muito porque mística não deixa de ser uma palavra, e como palavra é apenas um símbolo para representar alguma outra coisa, e não a própria coisa.
segunda-feira, 12 de março de 2007
Quando me fizeram partiram a forma
Lá no não-ser de onde fui criado
Volvi à terra arejando a proa
Para aqui tentar ser achado
E dessa forma que não há
E desse pensamento refractado
Foi meu vidro juntando bocado
a bocado para fazer gente
mas se mentindo só na mente
for enterrando o arado
talvez o sol m’alimente
e dê espaço p’r’à semente
crescer o seu bocado
Lá no não-ser de onde fui criado
Volvi à terra arejando a proa
Para aqui tentar ser achado
E dessa forma que não há
E desse pensamento refractado
Foi meu vidro juntando bocado
a bocado para fazer gente
mas se mentindo só na mente
for enterrando o arado
talvez o sol m’alimente
e dê espaço p’r’à semente
crescer o seu bocado
domingo, 11 de março de 2007
sábado, 10 de março de 2007
não adoram uma pessoa simpática? Há qualquer coisa nela, um não-sei-quê de disponibilidade e de entrega, de ausência de expectativa, de liberdade plena e de espontaneidade imensa. e, mais a mais, que custa ser simpático com os outros? as pessoas antipáticas são as mais egocêntricas que conheço. não lhes chega sentirem-se mal já, e quanto chegue, por dentro, ainda têm que o atirar à cara das pessoas que não têm culpa nenhum do seu mau humor. quando estou de mau humor escondo-me da realidade, seja em sono ou sonho, ou na metafísica das ideias, e guardo os meus efeitos das minhas consequências para mim. Para quê prostituir aquilo que se é?
sexta-feira, 9 de março de 2007
não me parece que o mundo tode gire à volta das profecias maias, ou das profecias de Nostradamus, ou seja de quem for, mas, de facto, é interessante notar em vários acontecimentos que se têm vindo a manifestar no nosso tempo, e que merecem a nossa reflexão por ser possível traçar determinados padrões específicos nos quais esses acontecimentos se encaixam. A questão ambiental é um deles. Tem havido uma crescente consciencialização acerca do papel do nosso planeta e dos seus processos intrínsecos que são tão fundamentais à nossa vida, para não falar da vida de tudo o mais que cá existe. Essa consciência surge devido às duas grandes guerras que vivemos, à descoberta da bomba atómica, à descoberta da radioactividade, da utilização de minérios radioactivos para produção de energia e à procura de soluções para eliminar os resíduos que deles resultam... a chegada do homem à lua também teve o seu papel, isto é, começam a surgir as primeiras imagens de satélite acerca do planeta, o planeta passa a poder ser visto do espaço, passa a poder ser contemplado, e é preciso notar que esta noção de que temos do nosso planeta ser "o planeta azul" vem dos anos 60 da última década, isto é, nem 50 anos nos chegam a separar entre uma situação e outra, e tudo isto está relacionado com um sentido estético, com um sentido de contemplação da beleza que há no mundo natural, e com a descoberta, também, do DNA como sendo a molécula que transporta a informação genética dos seres vivos - e aqui está outra descoberta que ainda nem um século tem; portanto, tratam-se de fenómenos recentes, e é assim que devem ser considerados. Os avanços, sobretudo na área da genética e regulação de processos, os avanços na ecologia, os desastres ecológicos - não só da bomba atómica, mas também por causa da revolução industrial, a poluição, o desenvolvimento dos plásticos a partir do petróleo, o desenvolvimento da indústria petrolífera, o crescimento das cidades, a crescente produção de resíduos, enfim, um sem-número de factores concorre para isto que temos hoje, e não nos devemos basear apenas em profecias disto ou daquilo. O que a profecia maia - e aqui dizemos maia, mas podíamos dizer cristã, ou podíamos dar o nome de muitas outras, isso não está em causa nem interessa - nos diz é que o mundo vai mudar. Ora, mas o mundo está sempre a mudar, o problema é que o mundo vai mudar pela passagem por uma série de cataclismos, ou de catástrofes, e isso encontra paralelo com algumas ideias que se têm vindo a desenvolver, como a Hipótese Gaia proposta por James Lovelock no contexto da Ecologia, isto é, a noção de que a Terra, enquanto planeta, é uma imensa teia (olhem, como a internet) de interrelações que se encontram todas ligadas entre si, e umas influenciam as outras. Mas não só na ecologia, há conceito interessantíssimos na Matemática e na Física a emergir, o conceito de fractal, por exemplo, ou o conceito do efeito borboleta, a teoria do caos, a própria interpretação dos fenómenos face à teoria da relatividade, os avanços na Termodinâmica, os conceitos de entropia e neguentropia, são tudo noções que subvertem as noções já instituídas e tomadas como certas e verdadeiras (será que o próprio Teorema da Incompletude é o expoente máximo de tudo isto?), tudo isto indica que estão a ocorrer imensas e intensas revoluções, e catástrofes, e cataclismos ao nível das ciências, mas também ao nível das artes, do ambiente, das sociedades, do mundo. O que é preciso é ver tudo isso como fazendo parte de um todo, porque o mundo é um todo, não é apenas umas pequenas partes todas somadas que dão um grande conjunto de partes, e, mesmo agora, já se vai tendo essa noção na Ecologia, isto é, já se vai percebendo que quanto maior é o nível de complexidade de um sistema, quanto mais variáveis estão em jogo numa equação, quantos mais elementos e maior a sua riqueza, a sua especificidade intrínseca, surgem propriedades especiais, interessantes, que não estão presentes em nenhuma das partes separadas. Este facto, só por si, já é extraordinário - então de onde nascem essas propriedades, será que elas já estão contidas nas partes mas precisam do meio certo para se desenvolverem, será que só quando todas as condições estão reunidas é que se podem expressar os altos e complexos e verdadeiramente inteligentes potenciais mais remotos, inconscientes e absolutos? Talvez seja isso que a vida nos quer mostrar, mas, de qualquer forma, cá estamos nós vivendo o nosso dia, um de cada vez, e descobrindo as surpresas que o hoje nos reserva.
quinta-feira, 8 de março de 2007
quarta-feira, 7 de março de 2007
Corre ainda a ideia pitoresca de que se pode construir filosofia sem uma educação científica profunda e uma informação muito sólida dos resultados a que vão chegando as diferentes ciências; moços e velhos pensadores com ligeireza se dispensam de saber como funciona a geometria analítica ou como se faz uma investigação biológica; os conhecimentos que se têm de física ou de química, quando não datam de há uma ou duas dezenas de anos, são apressadamente colhidos em resumos de jornais ou nas revistas do electricista amador.
Agostinho da Silva, em Ir à Índia sem abandonar Portugal
Agostinho da Silva, em Ir à Índia sem abandonar Portugal
quando era mais novo pensava tanto e de tanta forma diferente que me diziam ser demais. Então, quando percebi o que isso queria dizer, e deixei de fazer troça dessas coisas que de mim diziam, resolvi não pensar. Treinando-me a não pensar, pouco a pouco, fui vendo que, para além do pensamento, há todo um mundo de vacuidade, isto é, há todo um mundo de silêncio que fala ou de imobilização que se move, que existe dentro de nós. E não existindo apenas dentro d enós, existe também fora, e o espanto é quando reparamos que não há diferença nenhuma entre os dois, de tal forma que o silêncio é sempre um, e não há forma de distingui-lo, quer por palavras escritas, quer por sons vibrados - ele existe simplesmente sem se dizer ou escrever, mas fala pelo simples facto de existir, e é pelo existir que se faz ser, isto é, é pelo existir que é tão vivo como qualquer outra coisa que respire, ande ou fale.
Cartas a um Jovem Filósofo III - a matança
Estava a ler o conto "A Matança" quando me veio uma memória à cabeça, estava armazenada no meu inconsciente e resolveu emergir enquanto lia, interpretava e reflectia acerca do tema, e esta memória foi algo que vivi há pouco tempo, na última época de exames. O quadro foi este: os meus pais foram exactamente a casa dos meus avós maternos, que fica numa aldeia alentejana com o invulgar nome de Vale de Água (Vale d'Água para os amigos), e eu, que tinha bastante que fazer, não fui, e fiquei em casa - isto é, a casa dos meus pais, que fica numa pequena cidade do alentejo litoral chamada Santiago do Cacém. A razão que levou os meus pais a irem lá foi o facto de haver uma matança (de um porco), coisa que é muito característica por esses lados e que faz parte da vida das pessoas. A matança é uma altura em que a família se reune, é verdade (embora não estando presente lá desta vez já o estive doutras vezes), em que a casa se enche de gente, em que se chamam homens para vir ajudar a transportar e a matar o porco, a cortar a carne e separar as vísceras, uma altura em que as mulheres se juntam todas a arranjar a carne, a dispô-la segundo rituais milenares, a banhar-se no seu sangue e a juntá-lo todo para poder usá-lo como tempero para o arroz de miúdos, isto é, de vísceras (sobretudo fígado - miúdos duros - e pulmão e coração - miúdos moles, depois de cozinhados), que é tratado por todos como "a cachola", em que as mulheres juntam as tripas num cortiço e as lavam remexendo-as com uma vara comprida para que elas estejam prontas, limpas e arejadas, para que possam ser atadas com linha na extremidade e ser enchidas com carne e dêem lugar às linguiças e aos chouriços. Toda a gente que ajuda numa ou noutra parte, vizinhos ou amigos, e também familiares, tem sempre lugar à mesa, e come com quem compra o porco, com os senhores da casa e os seus familiares, o seu lugar é garantido pelo préstimo que foi dado, seja no que for. A canja sempre há, e sem pão não se começa a comer. Há um ritual para o trajecto que o porco transportado faz, para a matança, mas também para o acto de comer essa comida, acompanha-se com vinho, e serve-se à medida que se retira do porco: tudo se aproveita: primeiro cozinham-se as glândulas miúdas do porco (não tenho a certeza se serão as salivares, se as amígdalas, se uma mistura de todas elas), que são tão endemicamente chamadas (por processos de evolução linguísticos característicos da zona, do alentejo litoral) de "holândias" (a palavra 'glândulas' é má de pronunciar, e estranha a estas gentes), douram em brasas acesas para suster a fome que desponta e preparar o estômago; depois vêm as restantes vísceras, as tripas a arranjar e o sangue, antes que coalhe, é usado para fazer o arroz de miúdos, ou a cachola (uma vez, ainda me lembro, apesar de ter sido há muito tempo, um homem da cidade que ali passara dizia "cheira a arroz de cabidela", cabidela, uma palavra estranha que me soava estranha porque nunca tinha ouvido aquele nome, o arroz que eu conhecia não era arroz de cabidela nenhum, era a cachola, ou o arroz que o nome dela leva, o arroz de cachola), que se serve com a salada que há e com o pão de cada dia; por fim, o que mais tempo leva a preparar, a separar da gordura, a cortar em nacos, é a carne do porco, que sobre a brasa faz a febra, que se serve já só no fim a coroar o repasto. Esta é a memória que guardo da matança, a rede de associação mental que se abre nos caminhos psíquicos que fazem o que minha mente é, e é essa a minha vida, mas o que estava a contar era que me dei conta, mais tarde, nesse dia, depois dos meus pais terem voltado de casa dos meus avós, depois da matança, foi quando a minha mãe me disse que tinha trazido um pouco de cachola de lá, que me tinha guardado um pedaço dessa matança para mim, que estava em casa e que não havia podido ir, que tinha trazido até mim um eco de um passado distante que era o dela, porque os avós eram os meus, mas os pais eram os dela, essa pontinha de ar de campo e de aldeia que fez parte e sempre fará da minha infância - e a minha surpresa foi quando destapei o tacho, aquele tacho que estava mesmo à minha frente, um tacho banal, moderno q.b., como os tachos que em casa se usam, mas diferente, diferente de todos eles por aquilo que guardava dentro, quando destapei esse tacho e vi o que nele se encontrava aconteceu algo de muito estranho, veio-me em mim uma estranheza e uma hesitação, uma dúvida e um distanciamento; ali estava, como antes sempre esteve, um pedaço, o que sobrara, é certo, porque o resto come-se todo, de arroz de cachola, do arroz à cabidela, dos miúdos do porco cortados em cubos e às fatias e cozinhados em sangue coalhado e seco, castanho agora, que se revolvia por todo o arroz sujo que o permeava, ora o escondendo, ora o mostrando, ali, à minha espera, tinha sido guardado para mim, esse pedacinho de outrora, essa pequena parte do que eu fora, esse resíduo de sujo, essa ligação de ritual. E a estranheza, o desencanto, o distanciamento racional de quem analisa mentalmente as situações, a cabeça que não parava nos últimos dias, as perguntas que saltavam, a fome que se fazia tímida, e o arroz que se revoltava sem mexer, de tanto estar ali, à minha espera, feriu-me um local da consciência de que de adormecendo em adormecido se tinha feito, e atordoou-me por uns instantes, breves, mas agudos, em que a vontade cambaleou e a vontade de comer e de fazer parte do ritual, da tradição, daquilo que era tão óbvio para mim e que sempre o fora vacilou, se enredou, se sopesou, se susteve, se privou de cumprir, durante poucas fracções de segundo pendulares, durante breves instantes que pareceram horas, ali estava eu: a cachola, o tacho, a tampa desengonçada e a mesa, a cozinha, o espaço e o tempo a mesclarem-se e a brincarem um com o outro, e eu ali, de pé, especado, a olhar para o vazio sem ver nada. O que será que aquele pedaço da minha vida estava a fazer ali, a olhar para mim e a inquirir-me, então, porque é que não me comes, vais comer-me ou não, fui guardada para tu me comeres, então estás à espera de quê, estás a pensar na morte da bezerra, neste caso era do porco, estás a pensar sem agir e a sentir sem falar, então, vá, mexe-te e vai, mas o corpo não ia e a mente também não obedecia, estava simplesmente ali, de pé, sem me sentar, a pensar racional e friamente, como uma cabeça que só tem cérebro, a analisar o que era aquele tacho e aquele arroz e aquelas vísceras, a deduzir as leis do universo a partir de uma carne morta, a questionar o porquê daquela carne e do sítio de onde tinha vindo, a pensar como é que tinha chegado até à dúvida da coisa mais óbvia que até ali tivera como certa, a pensar como é que uma coisa tão simples nunca me tinha feito pensar assim dessa maneira. E depois comi. Não comi com o agrado de outrora, ou de outras ocasiões, deixei as vísceras moles de lado, não são da minha preferência, fiquei apenas com as duras, por exclusão mental e ponderada, ora uma garfada ali para ver se oferecia resistência à penetração do garfo, ora uma garfada aqui que mostrava que o garfo facilmente se entranhava na porção mais mole, ora juntava este pedaço com aquele na proporção certa de arroz e excluía o restante, ora escolhia só o arroz e o afogava em salada, e aos poucos o tacho foi ficando vazio, de arroz sobretudo, mas a carne ficou muita dela lá, jazia inerte e sem vida, como quando tinha sido morta, como quando tinha sido cortada, mas já não com o valor que outrora tinha. Agora, tudo era diferente. Sei que não voltarei a comer o que comi antes de outra matança, sei que se for a outra matança participarei do ritual como se fosse qualquer coisa banal, sei que aceitarei como meu quando viver isso com os meus próprios olhos, mas sei que já não verei o mesmo com os olhos que dantes tinha, porque esses olhos agora já não são os meus. Sei que não tornarei a comer mais aquela carne, e sei que só a tornaria a comer quando for a altura. Sei que abraçarei a tradição quando ela me abraçar a mim, mas também sei que não abraçarei aquilo que não for a minha tradição, pois não há só a tradição que nos ensinam, a tradição que se vive é também a tradição que se é, e por isso viverei sempre com um pé cá e o outro lá, com uma tradição no coração - também ele é uma víscera, a minha víscera bombeante de sangue e oxigénio e dióxido de carbono - e com outra tradição na cabeça, e quem sabe o que disso sairá, e quem sabe como será a tradição que viverei, a tradição ou as tradições, a vivência ou as vivências, quem sabe não sei, não o sei eu que o sinto, e não sei se alguém que não o sente saberá alguma vez, mas sei que as sentirei às duas como minhas porque de mim fazem parte, e sei que não poderei fazer nada mais que as contrarie, sei que não poderei fazer nada mais daquilo que são, sei que elas, as minhas tradições, serão sempre o que eu quer que elas sejam, mas que também eu serei sempre aquilo que elas querem que eu seja, e por isso comerei sempre agora com a boca, cheirarei sempre o odor com o nariz, e sentirei sempre a pele com as minhas mãos, mas o ouvido captará aquilo que terei capacidade para ouvir e os meus olhos verão aquilo que conseguem ver, a cabeça pensará aquilo que consegue pensar e o coração sentirá aquilo que não pode sentir de outro modo.
terça-feira, 6 de março de 2007
como seria possível viver num tempo em que nenhuma equação matemática pudesse descrever com precisão a imprevisibilidade da vida de qualquer partícula que fosse? - não sendo possível controlar, medir, quantificar, teríamos que nos ater àqueles fenómenos do visível, o que se pode observar e interpretar, e portanto toda a nota mental, toda a relação estabelecida e toda a conclusão retirada não seria mais uma certeza, mas antes uma incerteza, isto é, uma interpretação daquilo que vemos à luz daquilo que somos. Imaginemos que existia uma pessoa que, à semelhança de um daltónico, interpretava os fenómenos, isto é, interpretava os impulsos que recebiam os seus receptores nervosos de modo diferente de um grande conjunto de pessoas. Nesse caso, se estas pessoas estivessem no nosso tempo, que é o tempo da democracia, ganharia a vontade do maior número quantitativo de pessoas, e portanto essa visão da realidade, a interpretação do fenómeno, seria considerada um desvio à média, ou norma, daquilo que se tinha como sociedade. Como as minorias quantitativas (matematicamente exactas, com base em cálculos de percentagens) não têm voz nenhuma em democracia, então essas pessoas facilmente identificáveis como "anormais" não poderiam ser compreendidas pelas pessoas que interpretam a mesma realidade (o que quer que realmente exista, se é que existe) de uma forma diferente - e o espanto e esgar dessas pessoas seria ou directamente proporcional ou exponencialmente proporcional a esse desvio à norma maioritária. Compreende-se, assim, por um aspecto físico (de receptores de sensação) e mental (por processos conceptuais de interpretação de estímulos recebidos) por que razão uma pessoa com tal diferente constituição não pode ser correctamente compreendida mesmo por um seu par se este não possui o desvio físico e/ou mental de cada uma das estruturas referidas que se aproxime ao desvio da tal pessoa. Chamemos, por uma questão de linguagem escrita, e para facilitar o estabelecimento de redes de associação mental entre conceitos e significâncias, a essa pessoa inadaptado, visto que essa pessoa não se consegue adaptar tanto ao seu meio físico (recebe estímulos diferentes dos da maioria) como ao seu meio cultural (a sua sociedade e os postulados da sua cultura construídos com base nas percepções da maioria). Ora, pela teoria da selecção natural proposta por Darwin, só os mais aptos ao meio em que se encontram é que podem contribuir efectivamente para a constituição populacional da geração seguinte, através de processos de reprodução diferencial. O meio selecciona os indivíduos mais aptos, isto é, aqueles que já estão mais bem adaptados. O que se põe em causa é o papel que os indivíduos têm na sua própria selecção - será que esta é uma questão válida? Então vejamos: tomando como exemplo casos de pessoas inadaptadas, poderemos melhor concluir se estes tiveram, ou não, um papel activo na sua própria selecção natural, isto é, se de uma forma artificial esses inadaptados puderam passar para a próxima geração uma contribuição genética relevante, isto é, determinante para essa geração que sucedeu à sua. Que exemplos escolher para inadaptados? Talvez possamos admitir que Gandhi era um inadaptado. Gandhi não deu provas de interpretar os estímulos que os colonos ingleses interpretavam da mesma forma. Aliás, foi mesmo por interpretar esses estímulos de forma diferente que desenvolveu os seus ideais políticos para que a Índia se pudesse constituir como um país verdadeiramente independente, e não mais uma colónia britânica. Gandhi era uma minoria, visto que não se conhecem casos semelhantes que, no mesmo contexto histórico, com a mesma educação recebida, em suma, com a mesma qualidade de estímulos recebida tenham produzido respostas iguais ou, pelo menos, parecidas. Até mesmo a sua mensagem de não-violência era uma minoria, pois os grupos de independência indiana não partiam exactamente dessa premissa inicial. Posto isto, valida-se o termo de inadaptado para Gandhi. Pessoa é outro bom exemplo do século XX. Após o seu regresso a Lisboa, onde aliás passou a maior parte da sua vida, recebeu inúmeros e diferentes estímulos sensoriais e interpretou-os de forma inteiramente única, tanto mais que, quanto à interpretação, não se conhecem semelhantes para o mesmo contexto físico e cultural, e quanto à forma, também não se conhece semelhante profusão heteronímica para o referido contexto. Pessoa era uma minoria, se bem que num caso mais extremado e evidente, face à sua personalização ou despersonalização múltipla em todos os sentidos, e, portanto, um inadaptado. Até o próprio Agostinho da Silva, que passou por vários meios físicos e culturais, apresenta uma percepção e interpretação diferencial de estímulos, e tão específica na sua mensagem, devida ao seu carácter analítico por natureza, que também constitui uma minoria. Não se tem conhecimento de alguém que tenha produzido tanto e tão variado de tal maneira que não se possa arranjar termo comparativo para essa pessoa. O Agostinho da Silva também era um inadaptado. E na história abundam exemplos destes - Leonardo Da Vinci, Martinho Lutero, Galileu Galilei, Edgar Allan Poe, Sócrates, etc. De todos podemos dizer que são inadaptados. Mas qual o significado desta conclusão, que importância tem ela para uma selecção artificial? A selecção natural é aquela que se dá a partir dos indivíduos que, reproduzindo-se, passam o seu material genético hereditário físico para a sua descendência. Será que se poderá correlacionar uma passagem de material físico com uma passagem de material não físico, isto é, será que é possível estabelecer alguma relação entre a evolução física dos indivíduos que constituem uma população e a evolução dos conceitos que vigoram como média quantitativa nessa mesma população? Com base nos exemplos de inadaptados que foram explicitados é possível notar algo de extrema importância que é comum a todos eles: apesar da sua inadaptação, cada uma destas pessoas, individualmente, no seu contexto histórico, deu um contributo determinado, único e original à sua própria cultura. Independentemente do grau de aceitação, isto é, independentemente do número de pessoas que conseguia percepcionar, face aos mesmos estímulos, aquilo que era percepcionado por cada uma destas pessoas e, face ao mesmo background, interpretar o que era interpretado por cada uma destas pessoas, mesmo no meio de todas as diferenças que separam cada um destes inadaptados, ainda ressalta uma semelhança: todos eles tiveram ideias que acabaram por ser perpetuadas e desenvolvidas ao longo da história. As ideias-mães que surgiram na cabeça dessas pessoas, apesar de presentes num contexto de inadaptação, e, portanto, apesar de terem sido inseridas artificialmente, foram aquelas que originaram a descendência mais fértil, ou o maior número de descendentes ideias-filhas, na cabeça dos indivíduos de cada agrupamento sociológico. Assim, se a evolução darwiniana pode ser descrita como uma evolução do material genético hereditário físico ao longo dos indivíduos físicos que compõem uma população, uma evolução por ruptura, por descontinuidade ou inversão de padrões médios de ideias, isto é, uma evolução inadaptativa, caracteriza-se pelo estabelecimento ou fixação de ideias provenientes das mentes menos adaptadas de um dado contexto histórico-cultural. Contrastante com a evolução darwiniana, a evolução inadaptativa dá-se tanto mais rapidamente quanto menor for o número de indivíduos de uma população, pois à medida que este número diminui, o grau médio de conhecimentos acerca de uma determinada pessoa presente noutra pessoa que pertença a essa população aumenta, visto que a média de tempo que essas duas pessoas dessa população (ou quaisquer outras) passam juntas é cada vez maior (o mesmo tempo é repartido, em média, por cada vez menos pessoas, o que correlaciona o decréscimo sucessivo de amigos quantitativamente com o aumento do conhecimento qualitativo de cada amigo). A evolução do material genético hereditário cultural ou conceptual ao longo das mentes dos indivíduos físicos que compõem uma população dá-se por saltos qualitativos, que se caracterizam por novas formas de pensamento, e não somas de pensamentos subordinados a formas pré-definidas. Os indivíduos seleccionam artificialmente as ideias que passam para a geração seguinte, a partir da aceitação ou rejeição conceptual (interpretativa) das ideias próprias face às ideias dos outros, num processo de síntese hegeliana.
quando penso na habilidade com que os Antigos pensavam e recriavam o mundo, nas suas inovações técnicas, não posso ficar menos que abismado. Como é que com tão pouco ao seu dispor eles puderam fazer tanto, uma quantidade infindável de coisas interessantes e, por vezes, que requerem uma destreza tão fina, uns movimentos tão precisos, que mesmo nós com a nossa tecnologia temos dificuldade em executá-las... os modos de transmissão de conhecimento eram diferentes, e os saberes passavam de mestre a ajudante, como manda a Tradição, e o conhecimento era mantido por sucessões de gerações. Mas agora vieram as fábricas e os automóveis, a produção em série e a cibernética, a robótica e a electrónica, e o primeiro sai igual ao segundo, e tudo deixa de ser único para ser pré-feito, pré-fabricado, pré-comprado e, por vezes, pré-vendido. Não se faz nada de original, o que temos é uma cópia da cópia que foi copiada - mas não por uma pessoa, por uma máquina, precisamente, de forma igual, com a mesma altura e a mesma largura, a mesma estatura e comprimento, os mesmos átomos e a mesma resistência, os mesmos moldes e os mesmos polímeros. Onde é que haverá nesta sociedade tecnológica, nesta sociedade que vive, que se alimenta da tecnologia pré-fabricada, espaço para a originalidade, para a produção individual, para a espontaneidade, para o relógio que não anda e o tempo que não passa? Talvez na ciência esteja a resposta. Talvez mesmo o molde não seja sempre exactamente igual ao último que foi usado, talvez que o imprevisível sempre possa ocorrer e fazer variar as condições da experiência, talvez seja possível medir o contributo imperceptível da flutuação sinusoidal que a probabilidade de ocorrência de erros aleatórios e gerados pelos humano provoca, talvez as oscilações invisíveis da matéria possam ainda fazer das suas e trocar-nos as equações matemáticas, talvez um mais um não seja igual a dois. E, se assim for, teria que se reescrever toda esta matemática.
o grande problema da democracia é criar a ilusão nas pessoas de que elas possuem realmente o poder para fazer alguma coisa. O que a democracia lhes diz é que podem delegar a outro a sua responsabilidade individual para exercer esse poder da melhor forma que lhes convier. O poder não é, deste modo, das pessoas, do povo, mas sim dos partidos e daquilo que eles querem que o poder seja. Rebaixa-se o indivíduo pelo culto ao partido e transforma-se a pessoa em vedeta e ídolo a ser adorado por todos para camuflar esse sufoco da individualidade. Não há relação directa das pessoas com quem exerce o poder, apenas com instâncias que ninguém sabe muito bem o que são e que não representam coisa nenhuma. O poder está nas mãos de demasiadas pessoas que não sabem o que hão-de fazer com ele. O que é preciso neste momento é dar o poder aos poucos, ou ao único, que sabe realmente o que fazer com ele.
segunda-feira, 5 de março de 2007
Cartas a um Jovem Filósofo II - ainda a questão entre a tradição e o progresso
A obra O Sagrado e o Profano é um autêntico estudo antropológico acerca dos arquétipos que figuram no imaginário (individual? colectivo? talvez individual e colectivo!) de cada homem - portanto, tema em tudo relacionado com o conceito de Tradição. E lembrei-me desse texto porque ele adianta uma ideia que me pareceu muito interessante, a ideia de que o homem é um ser fortemente religioso: o valor dado a rituais de passagem (criança/adolescente, adolescente/adulto, etc.), aos ritmos da vida (nascimento/morte), à mudança das estações, às uniões, aos acontecimentos marcantes (primeiro beijo, casamento, morte dos pais, aniversários, etc. etc.), tudo isso faz parte de um resíduo (será que o poderemos chamar assim?, talvez uma reminescência) sagrado ou sacralizado que está tão bem impregnado na nossa consciência que até em tribos que muito pouco evoluíram tecnologicamente se manifesta. Que o homem se afaste dessa religiosidade intrínseca (ou arquetípica, atávica) é apenas fenómeno recente - mas a verdade é que ela permanece lá, mesmo nos mais simples actos do quotidiano. A valoração, ou significação, o significado que damos aos acontecimentos, o modo como os vivemos, permite-nos transformar a face da natureza, e talvez a tecnologia seja isso mesmo, uma extensão da dimensão significante humana que se quer tanto manifestar (por que mecanismos obscuros?) que acaba tendo representação última e somente plena de satisfação no plano físico. E contudo, estamos sempre à procura de mais...
a grande sucessora da telenovela de prime-time dos canais de televisão é a série. A explosão de novas, inteligentes e originais séries que marcam os programas televisivos vai marcar por completo a história da primeira década do século XXI - e quem sabe o que o futuro nos reserva... a telenovela ou grande romance (na acepção do Romantismo) não desaparecerá, mas certamente irá ter um lugar diferente daquele que tem, não tão preponderante, daqui em diante. Está a fazer-se história pelas subtilezas que nos levam de histórias que não retratam a realidade para a verdadeira realidade, real e surreal, objectiva e subjectiva; em suma, para a vida. E ainda bem. Assim é a evolução.
domingo, 4 de março de 2007
ATENÇÃO!
Proclamo em primeiro lugar,
A Lei de Malthus da Sensibilidade
Os estímulos da sensibilidade aumentam em progressão geométrica; a própria sensibilidade apenas em progressão aritmética.
Compreende-se a importância desta lei. A sensibilidade – tomada aqui no mais amplo dos seus sentidos possíveis – é a fonte de toda a criação civilizada. Mas essa criação só pode dar-se completamente quando essa sensibilidade esteja adaptada ao meio em que funciona; na proporção da adaptação da sensibilidade ao meio está a grandeza e a força da obra resultante.
Ora a sensibilidade, embora varie um pouco pela influência insistente do meio actual, é, nas suas linhas gerais, constante, e determinada no mesmo indivíduo desde a sua nascença, função do temperamento que a hereditariedade lhe infixou. A sensibilidade portanto progride por gerações.
As criações da civilização, que constituem o «meio» da sensibilidade, são a cultura, o progresso científico, a alteração nas condições políticas (dando à expressão um sentido completo); ora estes – e sobretudo o progresso cultural e científico, uma vez começado – progridem não por obra de gerações, mas pela interacção e sobreposição da obra de indivíduos e, embora lentamente a princípio, breve progridem ao ponto de tomarem proporções em que, de geração a geração, centenas de alterações se dão nestes novos estímulos da sensibilidade, ao passo que a sensibilidade deu, ao mesmo tempo, só um avanço, que é o de uma geração, porque o pai não transmite ao filho senão uma pequena parte das qualidades adquiridas.
Temos, pois, que a uma certa altura da civilização há-de haver uma desadaptação da sensibilidade ao meio, que consiste dos seus estímulos – uma falência portanto. Dá-se isso na nossa época, cuja incapacidade de criar grandes valores deriva dessa desadaptação.
A desadaptação não foi grande no primeiro período da nossa civilização, da Renascença ao século XVIII, em que os estímulos da sensibilidade eram sobretudo de ordem cultural, porque esses estímulos, por sua própria natureza, eram de progresso lento, e atingiam a princípio apenas as camadas superiores da sociedade. Acentuou-se a desadaptação no segundo período, que parte da Revolução para o século XIX, e em que os estímulos são já sobretudo políticos, onde a progressão é facilmente maior e o alcance do estímulo muito mais vasto. Cresceu a desadaptação vertiginosamente no período desde meados do século XIX à nossa época, em que o estímulo, sendo as criações da ciência, produz já uma rapidez de desenvolvimento que deixa atrás os progressos da sensibilidade, e, nas aplicações práticas da ciência, atinge toda a sociedade. Assim se chega à enorme desproporção entre o termo presente da progressão geométrica dos estímulos da sensibilidade e o termo correspondente da progressão aritmética da própria sensibilidade.
Daí a desadaptação, a incapacidade criativa da nossa época. Temos, portanto, um dilema: ou morte da civilização ou adaptação, artificial, visto que a natural, a instintiva faliu.
Para que a civilização não morra, proclamo, portanto, em segundo lugar,
A Necessidade da Adaptação Artificial
O que é a adaptação artificial?
É um acto de cirurgia sociológica. É a transformação violenta da sensibilidade de modo a tornar-se apta a acompanhar, pelo menos por algum tempo, a progressão dos seus estímulos.
A sensibilidade chegou a um estado mórbido, porque se desadaptou. Não há que pensar em curá-la. Não há curas sociais. Há que pensar em operá-la para que ela possa continuar a viver. Isto é, temos que substituir a morbidez natural da desadaptação pela sanidade artificial feita pela intervenção cirúrgica, embora envolva uma mutilação.
Álvaro de Campos
Proclamo em primeiro lugar,
A Lei de Malthus da Sensibilidade
Os estímulos da sensibilidade aumentam em progressão geométrica; a própria sensibilidade apenas em progressão aritmética.
Compreende-se a importância desta lei. A sensibilidade – tomada aqui no mais amplo dos seus sentidos possíveis – é a fonte de toda a criação civilizada. Mas essa criação só pode dar-se completamente quando essa sensibilidade esteja adaptada ao meio em que funciona; na proporção da adaptação da sensibilidade ao meio está a grandeza e a força da obra resultante.
Ora a sensibilidade, embora varie um pouco pela influência insistente do meio actual, é, nas suas linhas gerais, constante, e determinada no mesmo indivíduo desde a sua nascença, função do temperamento que a hereditariedade lhe infixou. A sensibilidade portanto progride por gerações.
As criações da civilização, que constituem o «meio» da sensibilidade, são a cultura, o progresso científico, a alteração nas condições políticas (dando à expressão um sentido completo); ora estes – e sobretudo o progresso cultural e científico, uma vez começado – progridem não por obra de gerações, mas pela interacção e sobreposição da obra de indivíduos e, embora lentamente a princípio, breve progridem ao ponto de tomarem proporções em que, de geração a geração, centenas de alterações se dão nestes novos estímulos da sensibilidade, ao passo que a sensibilidade deu, ao mesmo tempo, só um avanço, que é o de uma geração, porque o pai não transmite ao filho senão uma pequena parte das qualidades adquiridas.
Temos, pois, que a uma certa altura da civilização há-de haver uma desadaptação da sensibilidade ao meio, que consiste dos seus estímulos – uma falência portanto. Dá-se isso na nossa época, cuja incapacidade de criar grandes valores deriva dessa desadaptação.
A desadaptação não foi grande no primeiro período da nossa civilização, da Renascença ao século XVIII, em que os estímulos da sensibilidade eram sobretudo de ordem cultural, porque esses estímulos, por sua própria natureza, eram de progresso lento, e atingiam a princípio apenas as camadas superiores da sociedade. Acentuou-se a desadaptação no segundo período, que parte da Revolução para o século XIX, e em que os estímulos são já sobretudo políticos, onde a progressão é facilmente maior e o alcance do estímulo muito mais vasto. Cresceu a desadaptação vertiginosamente no período desde meados do século XIX à nossa época, em que o estímulo, sendo as criações da ciência, produz já uma rapidez de desenvolvimento que deixa atrás os progressos da sensibilidade, e, nas aplicações práticas da ciência, atinge toda a sociedade. Assim se chega à enorme desproporção entre o termo presente da progressão geométrica dos estímulos da sensibilidade e o termo correspondente da progressão aritmética da própria sensibilidade.
Daí a desadaptação, a incapacidade criativa da nossa época. Temos, portanto, um dilema: ou morte da civilização ou adaptação, artificial, visto que a natural, a instintiva faliu.
Para que a civilização não morra, proclamo, portanto, em segundo lugar,
A Necessidade da Adaptação Artificial
O que é a adaptação artificial?
É um acto de cirurgia sociológica. É a transformação violenta da sensibilidade de modo a tornar-se apta a acompanhar, pelo menos por algum tempo, a progressão dos seus estímulos.
A sensibilidade chegou a um estado mórbido, porque se desadaptou. Não há que pensar em curá-la. Não há curas sociais. Há que pensar em operá-la para que ela possa continuar a viver. Isto é, temos que substituir a morbidez natural da desadaptação pela sanidade artificial feita pela intervenção cirúrgica, embora envolva uma mutilação.
Álvaro de Campos
Cartas a um Jovem Filósofo I - a questão entre a tradição e o progresso
Houve uma coisa que não deixei bem esclarecida: é verdade que o telemóvel permite maior liberdade, mas essa liberdade está em nós (parte de nós), e não do telemóvel. O telemóvel é apenas mais um meio através do qual podemos expressar a nossa liberdade, a nossa individualidade. Quanto maior e mais variado for o número de meios à nossa disposição mais facilmente poderemos expressar essa liberdade. O problema surge apenas devido ao ritmo de crescimento desfasado da nossa sensibilidade em relação aos estímulos da mesma, como diria o Álvaro de Campos. Mas, e como ele próprio o diz, parece-me que até esse desfasamento pode ser ultrapassado pela adaptação a um novo mundo e a uma nova realidade, a uma nova maneira de ver as coisas. A resposta talvez esteja mesmo no "sentir tudo de todas as maneiras". As maneiras que são próprias à nossa própria natureza.
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