quarta-feira, 7 de março de 2007
Cartas a um Jovem Filósofo III - a matança
Estava a ler o conto "A Matança" quando me veio uma memória à cabeça, estava armazenada no meu inconsciente e resolveu emergir enquanto lia, interpretava e reflectia acerca do tema, e esta memória foi algo que vivi há pouco tempo, na última época de exames. O quadro foi este: os meus pais foram exactamente a casa dos meus avós maternos, que fica numa aldeia alentejana com o invulgar nome de Vale de Água (Vale d'Água para os amigos), e eu, que tinha bastante que fazer, não fui, e fiquei em casa - isto é, a casa dos meus pais, que fica numa pequena cidade do alentejo litoral chamada Santiago do Cacém. A razão que levou os meus pais a irem lá foi o facto de haver uma matança (de um porco), coisa que é muito característica por esses lados e que faz parte da vida das pessoas. A matança é uma altura em que a família se reune, é verdade (embora não estando presente lá desta vez já o estive doutras vezes), em que a casa se enche de gente, em que se chamam homens para vir ajudar a transportar e a matar o porco, a cortar a carne e separar as vísceras, uma altura em que as mulheres se juntam todas a arranjar a carne, a dispô-la segundo rituais milenares, a banhar-se no seu sangue e a juntá-lo todo para poder usá-lo como tempero para o arroz de miúdos, isto é, de vísceras (sobretudo fígado - miúdos duros - e pulmão e coração - miúdos moles, depois de cozinhados), que é tratado por todos como "a cachola", em que as mulheres juntam as tripas num cortiço e as lavam remexendo-as com uma vara comprida para que elas estejam prontas, limpas e arejadas, para que possam ser atadas com linha na extremidade e ser enchidas com carne e dêem lugar às linguiças e aos chouriços. Toda a gente que ajuda numa ou noutra parte, vizinhos ou amigos, e também familiares, tem sempre lugar à mesa, e come com quem compra o porco, com os senhores da casa e os seus familiares, o seu lugar é garantido pelo préstimo que foi dado, seja no que for. A canja sempre há, e sem pão não se começa a comer. Há um ritual para o trajecto que o porco transportado faz, para a matança, mas também para o acto de comer essa comida, acompanha-se com vinho, e serve-se à medida que se retira do porco: tudo se aproveita: primeiro cozinham-se as glândulas miúdas do porco (não tenho a certeza se serão as salivares, se as amígdalas, se uma mistura de todas elas), que são tão endemicamente chamadas (por processos de evolução linguísticos característicos da zona, do alentejo litoral) de "holândias" (a palavra 'glândulas' é má de pronunciar, e estranha a estas gentes), douram em brasas acesas para suster a fome que desponta e preparar o estômago; depois vêm as restantes vísceras, as tripas a arranjar e o sangue, antes que coalhe, é usado para fazer o arroz de miúdos, ou a cachola (uma vez, ainda me lembro, apesar de ter sido há muito tempo, um homem da cidade que ali passara dizia "cheira a arroz de cabidela", cabidela, uma palavra estranha que me soava estranha porque nunca tinha ouvido aquele nome, o arroz que eu conhecia não era arroz de cabidela nenhum, era a cachola, ou o arroz que o nome dela leva, o arroz de cachola), que se serve com a salada que há e com o pão de cada dia; por fim, o que mais tempo leva a preparar, a separar da gordura, a cortar em nacos, é a carne do porco, que sobre a brasa faz a febra, que se serve já só no fim a coroar o repasto. Esta é a memória que guardo da matança, a rede de associação mental que se abre nos caminhos psíquicos que fazem o que minha mente é, e é essa a minha vida, mas o que estava a contar era que me dei conta, mais tarde, nesse dia, depois dos meus pais terem voltado de casa dos meus avós, depois da matança, foi quando a minha mãe me disse que tinha trazido um pouco de cachola de lá, que me tinha guardado um pedaço dessa matança para mim, que estava em casa e que não havia podido ir, que tinha trazido até mim um eco de um passado distante que era o dela, porque os avós eram os meus, mas os pais eram os dela, essa pontinha de ar de campo e de aldeia que fez parte e sempre fará da minha infância - e a minha surpresa foi quando destapei o tacho, aquele tacho que estava mesmo à minha frente, um tacho banal, moderno q.b., como os tachos que em casa se usam, mas diferente, diferente de todos eles por aquilo que guardava dentro, quando destapei esse tacho e vi o que nele se encontrava aconteceu algo de muito estranho, veio-me em mim uma estranheza e uma hesitação, uma dúvida e um distanciamento; ali estava, como antes sempre esteve, um pedaço, o que sobrara, é certo, porque o resto come-se todo, de arroz de cachola, do arroz à cabidela, dos miúdos do porco cortados em cubos e às fatias e cozinhados em sangue coalhado e seco, castanho agora, que se revolvia por todo o arroz sujo que o permeava, ora o escondendo, ora o mostrando, ali, à minha espera, tinha sido guardado para mim, esse pedacinho de outrora, essa pequena parte do que eu fora, esse resíduo de sujo, essa ligação de ritual. E a estranheza, o desencanto, o distanciamento racional de quem analisa mentalmente as situações, a cabeça que não parava nos últimos dias, as perguntas que saltavam, a fome que se fazia tímida, e o arroz que se revoltava sem mexer, de tanto estar ali, à minha espera, feriu-me um local da consciência de que de adormecendo em adormecido se tinha feito, e atordoou-me por uns instantes, breves, mas agudos, em que a vontade cambaleou e a vontade de comer e de fazer parte do ritual, da tradição, daquilo que era tão óbvio para mim e que sempre o fora vacilou, se enredou, se sopesou, se susteve, se privou de cumprir, durante poucas fracções de segundo pendulares, durante breves instantes que pareceram horas, ali estava eu: a cachola, o tacho, a tampa desengonçada e a mesa, a cozinha, o espaço e o tempo a mesclarem-se e a brincarem um com o outro, e eu ali, de pé, especado, a olhar para o vazio sem ver nada. O que será que aquele pedaço da minha vida estava a fazer ali, a olhar para mim e a inquirir-me, então, porque é que não me comes, vais comer-me ou não, fui guardada para tu me comeres, então estás à espera de quê, estás a pensar na morte da bezerra, neste caso era do porco, estás a pensar sem agir e a sentir sem falar, então, vá, mexe-te e vai, mas o corpo não ia e a mente também não obedecia, estava simplesmente ali, de pé, sem me sentar, a pensar racional e friamente, como uma cabeça que só tem cérebro, a analisar o que era aquele tacho e aquele arroz e aquelas vísceras, a deduzir as leis do universo a partir de uma carne morta, a questionar o porquê daquela carne e do sítio de onde tinha vindo, a pensar como é que tinha chegado até à dúvida da coisa mais óbvia que até ali tivera como certa, a pensar como é que uma coisa tão simples nunca me tinha feito pensar assim dessa maneira. E depois comi. Não comi com o agrado de outrora, ou de outras ocasiões, deixei as vísceras moles de lado, não são da minha preferência, fiquei apenas com as duras, por exclusão mental e ponderada, ora uma garfada ali para ver se oferecia resistência à penetração do garfo, ora uma garfada aqui que mostrava que o garfo facilmente se entranhava na porção mais mole, ora juntava este pedaço com aquele na proporção certa de arroz e excluía o restante, ora escolhia só o arroz e o afogava em salada, e aos poucos o tacho foi ficando vazio, de arroz sobretudo, mas a carne ficou muita dela lá, jazia inerte e sem vida, como quando tinha sido morta, como quando tinha sido cortada, mas já não com o valor que outrora tinha. Agora, tudo era diferente. Sei que não voltarei a comer o que comi antes de outra matança, sei que se for a outra matança participarei do ritual como se fosse qualquer coisa banal, sei que aceitarei como meu quando viver isso com os meus próprios olhos, mas sei que já não verei o mesmo com os olhos que dantes tinha, porque esses olhos agora já não são os meus. Sei que não tornarei a comer mais aquela carne, e sei que só a tornaria a comer quando for a altura. Sei que abraçarei a tradição quando ela me abraçar a mim, mas também sei que não abraçarei aquilo que não for a minha tradição, pois não há só a tradição que nos ensinam, a tradição que se vive é também a tradição que se é, e por isso viverei sempre com um pé cá e o outro lá, com uma tradição no coração - também ele é uma víscera, a minha víscera bombeante de sangue e oxigénio e dióxido de carbono - e com outra tradição na cabeça, e quem sabe o que disso sairá, e quem sabe como será a tradição que viverei, a tradição ou as tradições, a vivência ou as vivências, quem sabe não sei, não o sei eu que o sinto, e não sei se alguém que não o sente saberá alguma vez, mas sei que as sentirei às duas como minhas porque de mim fazem parte, e sei que não poderei fazer nada mais que as contrarie, sei que não poderei fazer nada mais daquilo que são, sei que elas, as minhas tradições, serão sempre o que eu quer que elas sejam, mas que também eu serei sempre aquilo que elas querem que eu seja, e por isso comerei sempre agora com a boca, cheirarei sempre o odor com o nariz, e sentirei sempre a pele com as minhas mãos, mas o ouvido captará aquilo que terei capacidade para ouvir e os meus olhos verão aquilo que conseguem ver, a cabeça pensará aquilo que consegue pensar e o coração sentirá aquilo que não pode sentir de outro modo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário