sábado, 17 de março de 2007

a carta que nunca verás

esta é a carta que nunca verás.
Nunca saberás o que foste para mim,
nem aquilo que poderias ter sido.
A esperança morreu antes de ser parida do meu ventre
E tu dóis-me como as lombrigas das fezes
que bóiam na latrina
Nunca quiseste que houvesse algo, para ti
o nada era a conversa de tudo
e na inexistência do primeiro passo
na fugacidade das tocas em que te escondias
não houve tempo para o risco de vir cá para fora
e cheirar o sol no céu azul, e
as árvores e as ervas
o que passou, se algo havia, foi com o vento
para os abismos absurdos do esquecimento
e tu permaneceste na tua cama fria
a desfiar as contas que vais tecendo
como se fosse frio esse vento que passa
mas não fica
foste a indiferença do bater do relógio
e a possibilidade de um mundo anterior à dor
mas quiseste escolher as tuas contas de plástico e papel
e emoldurá-las nos pescoços cinzentos
das horas que o pêndulo bate
a tua torre continua selada por dentro
e nos teus véus nevoeiro das esquinas
não sabes o que é sentir o pássaro na cabeça
nem o que é a liberdade do pássaro
quando o soltam da gaiola
és igual a tantas outras que vão ficando sem fazer
tecendo à luz do dia cardos e rosas
que o espelho reflecte em naturezas partidas
e mortas
como a carcaça podre de um cão lazarento

mas se não te falo
não é porque não goste do espelho
das contas, do rio que passa, do fio que teces
é só porque nessa tua modorra me aborreces
como a velha que de tão frágil morreu em nova
como o burro que não passou a ponte
ou a pomba que nunca usou as asas
és mais uma folha vencida pelo Outono
que voou para longe e já não alimenta
a árvore
ou uma metade de coisa
de que já se esqueceu há muito
e que já não vive porque ninguém pensa nela

escrevo para mim, para que saibas tu
que nunca verás a tinta destas letras
e a textura destas palavras
que ficará a sombra do prédio já há muito
abandonado
como a poça de água esquecida
num beco fugidio
e que para mim não foste mais que um sonho
que se quebrou quando se acordou a meio
pela mão do despertador que tocou
fora de horas
e assim viverás o teu destino,
e eu o meu
na lua das coisas que não voltam
a remoer o já digerido
mas pudesses tu ver apenas a parte que escrevo
então perceberias o caminho que deixaste
para trás
talvez se acendesse a vela da nau valente
e a candeia pudesse guiar
na noite escura
talvez, sob ela, as contas parecessem lascadas
e os pescoços deixassem de ser exangues
mas aí tu já serias outra, e
não a mesma
serias não o sonho que sonhado não fora
mas apenas o abismo que nunca se mostra
o mesmo
e querendo fazer correr o rio para trás
eu te diria
- disso ninguém é capaz

mas se pensas que sou eu
esse monte amargo de desgostos mal sofridos
então não vês o eu que sou
e respiro
mas apenas o reflexo da imagem
que o teu eu tem de mim
e que sem me conhecer me julga e me finda
ao achar que ficou tudo dito
e se as águas ficaram presas
por não conseguirem chegar ao mar
lembra-te ao menos disto:
foste tu que não as fizeste chegar
deleita-te agora com o rio que secou
nas tuas mãos
se ficaste à espera do comboio que não veio
então esqueces-te das vezes que o comboio passou
e tu não o apanhaste
porque tiveste o bilhete certo apertado
entre as mãos
e nunca o chegaste a usar
por achar que, se as abrisses, ele podia fugir
para longe
e assim há-de permanecer a tua vida
o ensejo varrido para debaixo do tapete
à espera que alguém o carregue e leve
para arejar
mas que de tão pesado nunca sai
do seu lugar

é o vazio da inexistência do sonho
um livro aberto que comeu as próprias folhas

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