terça-feira, 6 de março de 2007

como seria possível viver num tempo em que nenhuma equação matemática pudesse descrever com precisão a imprevisibilidade da vida de qualquer partícula que fosse? - não sendo possível controlar, medir, quantificar, teríamos que nos ater àqueles fenómenos do visível, o que se pode observar e interpretar, e portanto toda a nota mental, toda a relação estabelecida e toda a conclusão retirada não seria mais uma certeza, mas antes uma incerteza, isto é, uma interpretação daquilo que vemos à luz daquilo que somos. Imaginemos que existia uma pessoa que, à semelhança de um daltónico, interpretava os fenómenos, isto é, interpretava os impulsos que recebiam os seus receptores nervosos de modo diferente de um grande conjunto de pessoas. Nesse caso, se estas pessoas estivessem no nosso tempo, que é o tempo da democracia, ganharia a vontade do maior número quantitativo de pessoas, e portanto essa visão da realidade, a interpretação do fenómeno, seria considerada um desvio à média, ou norma, daquilo que se tinha como sociedade. Como as minorias quantitativas (matematicamente exactas, com base em cálculos de percentagens) não têm voz nenhuma em democracia, então essas pessoas facilmente identificáveis como "anormais" não poderiam ser compreendidas pelas pessoas que interpretam a mesma realidade (o que quer que realmente exista, se é que existe) de uma forma diferente - e o espanto e esgar dessas pessoas seria ou directamente proporcional ou exponencialmente proporcional a esse desvio à norma maioritária. Compreende-se, assim, por um aspecto físico (de receptores de sensação) e mental (por processos conceptuais de interpretação de estímulos recebidos) por que razão uma pessoa com tal diferente constituição não pode ser correctamente compreendida mesmo por um seu par se este não possui o desvio físico e/ou mental de cada uma das estruturas referidas que se aproxime ao desvio da tal pessoa. Chamemos, por uma questão de linguagem escrita, e para facilitar o estabelecimento de redes de associação mental entre conceitos e significâncias, a essa pessoa inadaptado, visto que essa pessoa não se consegue adaptar tanto ao seu meio físico (recebe estímulos diferentes dos da maioria) como ao seu meio cultural (a sua sociedade e os postulados da sua cultura construídos com base nas percepções da maioria). Ora, pela teoria da selecção natural proposta por Darwin, só os mais aptos ao meio em que se encontram é que podem contribuir efectivamente para a constituição populacional da geração seguinte, através de processos de reprodução diferencial. O meio selecciona os indivíduos mais aptos, isto é, aqueles que já estão mais bem adaptados. O que se põe em causa é o papel que os indivíduos têm na sua própria selecção - será que esta é uma questão válida? Então vejamos: tomando como exemplo casos de pessoas inadaptadas, poderemos melhor concluir se estes tiveram, ou não, um papel activo na sua própria selecção natural, isto é, se de uma forma artificial esses inadaptados puderam passar para a próxima geração uma contribuição genética relevante, isto é, determinante para essa geração que sucedeu à sua. Que exemplos escolher para inadaptados? Talvez possamos admitir que Gandhi era um inadaptado. Gandhi não deu provas de interpretar os estímulos que os colonos ingleses interpretavam da mesma forma. Aliás, foi mesmo por interpretar esses estímulos de forma diferente que desenvolveu os seus ideais políticos para que a Índia se pudesse constituir como um país verdadeiramente independente, e não mais uma colónia britânica. Gandhi era uma minoria, visto que não se conhecem casos semelhantes que, no mesmo contexto histórico, com a mesma educação recebida, em suma, com a mesma qualidade de estímulos recebida tenham produzido respostas iguais ou, pelo menos, parecidas. Até mesmo a sua mensagem de não-violência era uma minoria, pois os grupos de independência indiana não partiam exactamente dessa premissa inicial. Posto isto, valida-se o termo de inadaptado para Gandhi. Pessoa é outro bom exemplo do século XX. Após o seu regresso a Lisboa, onde aliás passou a maior parte da sua vida, recebeu inúmeros e diferentes estímulos sensoriais e interpretou-os de forma inteiramente única, tanto mais que, quanto à interpretação, não se conhecem semelhantes para o mesmo contexto físico e cultural, e quanto à forma, também não se conhece semelhante profusão heteronímica para o referido contexto. Pessoa era uma minoria, se bem que num caso mais extremado e evidente, face à sua personalização ou despersonalização múltipla em todos os sentidos, e, portanto, um inadaptado. Até o próprio Agostinho da Silva, que passou por vários meios físicos e culturais, apresenta uma percepção e interpretação diferencial de estímulos, e tão específica na sua mensagem, devida ao seu carácter analítico por natureza, que também constitui uma minoria. Não se tem conhecimento de alguém que tenha produzido tanto e tão variado de tal maneira que não se possa arranjar termo comparativo para essa pessoa. O Agostinho da Silva também era um inadaptado. E na história abundam exemplos destes - Leonardo Da Vinci, Martinho Lutero, Galileu Galilei, Edgar Allan Poe, Sócrates, etc. De todos podemos dizer que são inadaptados. Mas qual o significado desta conclusão, que importância tem ela para uma selecção artificial? A selecção natural é aquela que se dá a partir dos indivíduos que, reproduzindo-se, passam o seu material genético hereditário físico para a sua descendência. Será que se poderá correlacionar uma passagem de material físico com uma passagem de material não físico, isto é, será que é possível estabelecer alguma relação entre a evolução física dos indivíduos que constituem uma população e a evolução dos conceitos que vigoram como média quantitativa nessa mesma população? Com base nos exemplos de inadaptados que foram explicitados é possível notar algo de extrema importância que é comum a todos eles: apesar da sua inadaptação, cada uma destas pessoas, individualmente, no seu contexto histórico, deu um contributo determinado, único e original à sua própria cultura. Independentemente do grau de aceitação, isto é, independentemente do número de pessoas que conseguia percepcionar, face aos mesmos estímulos, aquilo que era percepcionado por cada uma destas pessoas e, face ao mesmo background, interpretar o que era interpretado por cada uma destas pessoas, mesmo no meio de todas as diferenças que separam cada um destes inadaptados, ainda ressalta uma semelhança: todos eles tiveram ideias que acabaram por ser perpetuadas e desenvolvidas ao longo da história. As ideias-mães que surgiram na cabeça dessas pessoas, apesar de presentes num contexto de inadaptação, e, portanto, apesar de terem sido inseridas artificialmente, foram aquelas que originaram a descendência mais fértil, ou o maior número de descendentes ideias-filhas, na cabeça dos indivíduos de cada agrupamento sociológico. Assim, se a evolução darwiniana pode ser descrita como uma evolução do material genético hereditário físico ao longo dos indivíduos físicos que compõem uma população, uma evolução por ruptura, por descontinuidade ou inversão de padrões médios de ideias, isto é, uma evolução inadaptativa, caracteriza-se pelo estabelecimento ou fixação de ideias provenientes das mentes menos adaptadas de um dado contexto histórico-cultural. Contrastante com a evolução darwiniana, a evolução inadaptativa dá-se tanto mais rapidamente quanto menor for o número de indivíduos de uma população, pois à medida que este número diminui, o grau médio de conhecimentos acerca de uma determinada pessoa presente noutra pessoa que pertença a essa população aumenta, visto que a média de tempo que essas duas pessoas dessa população (ou quaisquer outras) passam juntas é cada vez maior (o mesmo tempo é repartido, em média, por cada vez menos pessoas, o que correlaciona o decréscimo sucessivo de amigos quantitativamente com o aumento do conhecimento qualitativo de cada amigo). A evolução do material genético hereditário cultural ou conceptual ao longo das mentes dos indivíduos físicos que compõem uma população dá-se por saltos qualitativos, que se caracterizam por novas formas de pensamento, e não somas de pensamentos subordinados a formas pré-definidas. Os indivíduos seleccionam artificialmente as ideias que passam para a geração seguinte, a partir da aceitação ou rejeição conceptual (interpretativa) das ideias próprias face às ideias dos outros, num processo de síntese hegeliana.

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