quarta-feira, 25 de abril de 2007
Mas que bom é estar sozinho!
Não ter ninguém com quem falar apertado
Poder ser só o que se é achado
Sem perigo espreitar vizinho
Ai que bom é o estar sozinho!
Não ouvir soar telemóvel irado
Deixar a bateria escorrer pelo estrado
Poder empanturrar-me de vinho!
Mas o melhor disto tudo
é ouvir o som que soa
E o mais que apregoa
O que vale acompanhado?
Se a vida realmente boa
É ser um só descuidado
Anarquista e ter prática proa
'largar o cinto e o mais que morra
Não ter ninguém com quem falar apertado
Poder ser só o que se é achado
Sem perigo espreitar vizinho
Ai que bom é o estar sozinho!
Não ouvir soar telemóvel irado
Deixar a bateria escorrer pelo estrado
Poder empanturrar-me de vinho!
Mas o melhor disto tudo
é ouvir o som que soa
E o mais que apregoa
O que vale acompanhado?
Se a vida realmente boa
É ser um só descuidado
Anarquista e ter prática proa
'largar o cinto e o mais que morra
Há momentos em que tem a ilusão de se ter libertado, pelo menos, da impaciência que toda a vida o acompanhou, quando vê os outros errarem em todas as coisas que fazem e quando pensa que, no lugar deles, também teria errado não menos que eles, mas que apesar de tudo teria dado por isso.
Italo Calvino dá voz ao senhor Palomar em Palomar
Italo Calvino dá voz ao senhor Palomar em Palomar
terça-feira, 24 de abril de 2007
Falas de civilização, de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para quê te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as coisas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos os que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!
Alberto Caeiro
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para quê te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as coisas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos os que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!
Alberto Caeiro
O Colectivo não é mais que o agrupamento de vários Individuais.
O Colectivo não existe, o Colectivo só existe quando todos os Individuais estão juntos.
Mas os Individuais não estão sempre juntos; aliás, os Individuais estão muito poucas vezes juntos.
Portanto, é muito mais real o Individual que o Colectivo.
O Colectivo não existe, o Colectivo só existe quando todos os Individuais estão juntos.
Mas os Individuais não estão sempre juntos; aliás, os Individuais estão muito poucas vezes juntos.
Portanto, é muito mais real o Individual que o Colectivo.
Deito-me ao comprido na erva
E esqueço tudo quanto me ensinaram.
O que me ensinaram nunca me deu mais calor nem mais frio.
O que me disseram que havia nunca me alterou a forma de uma coisa.
O que me aprenderam a ver nunca tocou nos meus olhos.
O que me apontaram nunca estava ali: estava ali só o que ali estava.
Alberto Caeiro
E esqueço tudo quanto me ensinaram.
O que me ensinaram nunca me deu mais calor nem mais frio.
O que me disseram que havia nunca me alterou a forma de uma coisa.
O que me aprenderam a ver nunca tocou nos meus olhos.
O que me apontaram nunca estava ali: estava ali só o que ali estava.
Alberto Caeiro
domingo, 22 de abril de 2007
sexta-feira, 20 de abril de 2007
elogio à cegueira
se és poeta, sê mesquinho
retorcido verme d'algibeira
melhor é comer toucinho
p'ra arder em fogueira
come excrementos reais
reais como só real pode ser
os que falam são banais
não falam se querem comer
por isso caga, caga o incagável
esquece, esquece o que não se pode esquecer
e ama ainda o intratável
coma-se então o que se comer
a tua vida é toda condestável
estende o prato e deixa de ver
retorcido verme d'algibeira
melhor é comer toucinho
p'ra arder em fogueira
come excrementos reais
reais como só real pode ser
os que falam são banais
não falam se querem comer
por isso caga, caga o incagável
esquece, esquece o que não se pode esquecer
e ama ainda o intratável
coma-se então o que se comer
a tua vida é toda condestável
estende o prato e deixa de ver
vamos matar a poesia!
asfixiá-la com sabor a erudição,
violá-la antes que amadureça,
metê-la na prisão para crianças,
comê-la com açúcar a escorrer pelas fossas nasais,
excretá-la com fibras intratadas regurgitando-las inteiras,
esquecê-la com as grandes frases feitas de álcool evolado aos céus,
empurrá-la para o cubículo da existência mecânica e formigueira,
sorrir e rir muito, e dizer que está tudo como o sol
e que não podia ser de outra maneira
porque essa é que é a verdadeira
a maneira de mentir a veia
que dá vida à nossa
essência
asfixiá-la com sabor a erudição,
violá-la antes que amadureça,
metê-la na prisão para crianças,
comê-la com açúcar a escorrer pelas fossas nasais,
excretá-la com fibras intratadas regurgitando-las inteiras,
esquecê-la com as grandes frases feitas de álcool evolado aos céus,
empurrá-la para o cubículo da existência mecânica e formigueira,
sorrir e rir muito, e dizer que está tudo como o sol
e que não podia ser de outra maneira
porque essa é que é a verdadeira
a maneira de mentir a veia
que dá vida à nossa
essência
o mundo é
o mundo está feito para os decorantes e faxinantes.
o mundo é governado por franchinotes execravelmente obnóxios.
o mundo é a latrina do líquido cefalorraquidiano que escorre dos encéfalos dos franchinotes.
o mundo é a excrescência pulverulenta do vírus que infecta as consciências estraçalhadas.
o mundo é o oxidante da pureza electrónica que rodeia as partículas elementarmente vitais.
o mundo é a engrenagem que encrava a respiração e o timbre musical da harmonia que ecoa nas esferas vibrantes.
o mundo é a máquina sugadora de toda a vida orgânica e inorgânica que ascende asceticamente até ao onírico e poético Céu Estrelado De Todos os Conceitos Puros.
o mundo é toda a escória não biodegradável que impede o prossecução do ciclo da matéria.
o mundo é a energia excessivamente célere que engole a razão da existência da própria energia.
o mundo é a vontade fisiologicamente egestiva que nos impede de aumentar o número de projecções dendríticas e conexões sinápticas.
o mundo é toda essa merda que pensa que é o mundo mas que não é o mundo
e vai vivendo alegremente enquanto parasita tudo o que é vida.
o mundo é governado por franchinotes execravelmente obnóxios.
o mundo é a latrina do líquido cefalorraquidiano que escorre dos encéfalos dos franchinotes.
o mundo é a excrescência pulverulenta do vírus que infecta as consciências estraçalhadas.
o mundo é o oxidante da pureza electrónica que rodeia as partículas elementarmente vitais.
o mundo é a engrenagem que encrava a respiração e o timbre musical da harmonia que ecoa nas esferas vibrantes.
o mundo é a máquina sugadora de toda a vida orgânica e inorgânica que ascende asceticamente até ao onírico e poético Céu Estrelado De Todos os Conceitos Puros.
o mundo é toda a escória não biodegradável que impede o prossecução do ciclo da matéria.
o mundo é a energia excessivamente célere que engole a razão da existência da própria energia.
o mundo é a vontade fisiologicamente egestiva que nos impede de aumentar o número de projecções dendríticas e conexões sinápticas.
o mundo é toda essa merda que pensa que é o mundo mas que não é o mundo
e vai vivendo alegremente enquanto parasita tudo o que é vida.
quarta-feira, 18 de abril de 2007
Dizem que finjo ou minto tudo o que escrevo
Excessivo? Não.
Apenas sinto
Com o coração.
Não uso a cabeça.
Toda a vida é para mim empresa
De dar e estender a mão.
Se os outros a têm fechada
Isso é de quem a manda
Como criança no colo apertada
Quem não chora não mama.
E no céu da vitória alada
Vou andando com vagar
Quem segue é a estrada
Leve-me onde levar
é ela quem me chama
Excessivo? Não.
Apenas sinto
Com o coração.
Não uso a cabeça.
Toda a vida é para mim empresa
De dar e estender a mão.
Se os outros a têm fechada
Isso é de quem a manda
Como criança no colo apertada
Quem não chora não mama.
E no céu da vitória alada
Vou andando com vagar
Quem segue é a estrada
Leve-me onde levar
é ela quem me chama
segunda-feira, 16 de abril de 2007
domingo, 15 de abril de 2007
sábado, 7 de abril de 2007
sexta-feira, 6 de abril de 2007
fragmentos
não ser eu e ser tudo
e todos em toda a parte
matar esta sede para que possa beber
mais descansado
para que a água possa afluir
mais livre à minha boca
para que a voz possa soar de
dentro, não de fora
e o canto possa sair mais
descansado
devagarinho, de mansinho
jamais amestrado ou
amostrado ou admoestado
sei o caminho por dele estar
alheio
e caminho sempre sem ver
a direito
não tenho outro ser, só o andar
que me leva para não ver, que
me leva só para chegar
e todos em toda a parte
matar esta sede para que possa beber
mais descansado
para que a água possa afluir
mais livre à minha boca
para que a voz possa soar de
dentro, não de fora
e o canto possa sair mais
descansado
devagarinho, de mansinho
jamais amestrado ou
amostrado ou admoestado
sei o caminho por dele estar
alheio
e caminho sempre sem ver
a direito
não tenho outro ser, só o andar
que me leva para não ver, que
me leva só para chegar
quinta-feira, 5 de abril de 2007
Sinto um horror às coisas banais.
Um não poder estar com o a que cheguei.
Indisposto como quando depois de vomitar.
Uma saudade de algo que nunca existiu
Uma esperança de algo que não se cumpre
Findo o dia, permanece o mundo igual
Não mudou nada, as pessoas continuam pessoas
Os deuses continuam deuses
E eu amarrado à condição de ser escravo deles.
Corrói-me isso como um ácido fraco
Que vai corroendo sem doer, e doendo sem sentir
E que de repente sente-se todo duma só vez
e nos derruba como uma verdade absoluta
Não sei mais sobre a vida que a vida sobre si mesma.
Nem mesmo os farrapos que guardo servem para limpar o chão em que piso.
Os dedos dos pés estão gretados de andar tanto ao sol e à chuva
A natureza não os poupou com a erva verde
Lançaram-me pedras para debaixo dos pés descalços
E andei por cima delas sem me importar com isso
Mas agora que parei elas doem como uma dor que não se conhece o nome
E não se pode aliviar porque ela não pode ser contada a ninguém.
Um peso de pedra pesa-me nos pés em chaga.
De que vale caminhar por montes e vales, se se acaba chegando ao mesmo sítio?
De que vale esforçar a voz para gastar as cordas vocais nas suas vibrações?
De que vale tentar caminhar descalço para se chegar mais cheio ao fim,
se no fim todos são iguais, todos desembocam num grande lago profundo
Que ninguém conhece e que ninguém quer conhecer
A esperança também se escondeu na sua toca escura,
e já não volta
O sol não consegue aquecer a água do lago por ser tanta e tão funda
A chuva não consegue encher o lago por ser tão escassa e tão esparsa
O vento não consegue mover a maré, porque não há maré que se queira mover mais
A erva não consegue crescer, nem no fundo do lago, porque não há luz que lá chegue.
E a mim, só me resta afogar-me nesse lago
Já que tudo me escapa e não sei ser essa água que vejo à minha frente
Pode ser que nela me dissolva e esqueça as mentiras que me contaram
E deixe de ter forma que não serve para nada.
Um não poder estar com o a que cheguei.
Indisposto como quando depois de vomitar.
Uma saudade de algo que nunca existiu
Uma esperança de algo que não se cumpre
Findo o dia, permanece o mundo igual
Não mudou nada, as pessoas continuam pessoas
Os deuses continuam deuses
E eu amarrado à condição de ser escravo deles.
Corrói-me isso como um ácido fraco
Que vai corroendo sem doer, e doendo sem sentir
E que de repente sente-se todo duma só vez
e nos derruba como uma verdade absoluta
Não sei mais sobre a vida que a vida sobre si mesma.
Nem mesmo os farrapos que guardo servem para limpar o chão em que piso.
Os dedos dos pés estão gretados de andar tanto ao sol e à chuva
A natureza não os poupou com a erva verde
Lançaram-me pedras para debaixo dos pés descalços
E andei por cima delas sem me importar com isso
Mas agora que parei elas doem como uma dor que não se conhece o nome
E não se pode aliviar porque ela não pode ser contada a ninguém.
Um peso de pedra pesa-me nos pés em chaga.
De que vale caminhar por montes e vales, se se acaba chegando ao mesmo sítio?
De que vale esforçar a voz para gastar as cordas vocais nas suas vibrações?
De que vale tentar caminhar descalço para se chegar mais cheio ao fim,
se no fim todos são iguais, todos desembocam num grande lago profundo
Que ninguém conhece e que ninguém quer conhecer
A esperança também se escondeu na sua toca escura,
e já não volta
O sol não consegue aquecer a água do lago por ser tanta e tão funda
A chuva não consegue encher o lago por ser tão escassa e tão esparsa
O vento não consegue mover a maré, porque não há maré que se queira mover mais
A erva não consegue crescer, nem no fundo do lago, porque não há luz que lá chegue.
E a mim, só me resta afogar-me nesse lago
Já que tudo me escapa e não sei ser essa água que vejo à minha frente
Pode ser que nela me dissolva e esqueça as mentiras que me contaram
E deixe de ter forma que não serve para nada.
Tabacaria
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei que moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheco-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei que moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheco-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos
Poema de plástico XXI
Vi uma casca de banana
Estendida no meio da rua
Será que ela é tua
ou de quem já não mama?
Uma casca enrolada
Tão plácida no seu chão
Fez-me lembrar a banana
Que estava na tua mão
Tão bela e escorregadia
Roliça ela estava
E amarela quem a via
Lembrou-me logo de ti
E de quando te namorava
Ai o amor que eu sentia!
Estendida no meio da rua
Será que ela é tua
ou de quem já não mama?
Uma casca enrolada
Tão plácida no seu chão
Fez-me lembrar a banana
Que estava na tua mão
Tão bela e escorregadia
Roliça ela estava
E amarela quem a via
Lembrou-me logo de ti
E de quando te namorava
Ai o amor que eu sentia!
toda a vida é ilusão
uma farsa, apagada,
uma coisa mal-amanhada,
um pedaço de tostão
toda a vida é um castigo
uma correia que não diz nada
um constante sem-abrigo
uma loucura de saber nada
toda a vida é uma morte
finita em si e sem razão
não há nela nenhuma sorte
maior que a sina do caixão
toda a vida é como um sonho
que se sonhou muito e acordando
mostrou apenas que há tristonho
não há nada que vá andando
mas se a vida fosse mais
se houvesse mais que isso
uma esperança, um desafio
uma beleza entre vitrais
um canto sem fastio
se houvesse liberdade sem juízo
e no pensamento em ouriço
só houvesse sol, e corrediço,
a dar alegrias por canais
se os sonhos pudessem ser tocados
e por mil bocas beijados
se houvesse descanso em candura
e toda a corneta da verdura
então seria nossa mente
todo um mar de sinais
feito só p'ra quem sente
mas aí estaria a mais,
estaria eu bem errado
e, comigo, toda a gente
uma farsa, apagada,
uma coisa mal-amanhada,
um pedaço de tostão
toda a vida é um castigo
uma correia que não diz nada
um constante sem-abrigo
uma loucura de saber nada
toda a vida é uma morte
finita em si e sem razão
não há nela nenhuma sorte
maior que a sina do caixão
toda a vida é como um sonho
que se sonhou muito e acordando
mostrou apenas que há tristonho
não há nada que vá andando
mas se a vida fosse mais
se houvesse mais que isso
uma esperança, um desafio
uma beleza entre vitrais
um canto sem fastio
se houvesse liberdade sem juízo
e no pensamento em ouriço
só houvesse sol, e corrediço,
a dar alegrias por canais
se os sonhos pudessem ser tocados
e por mil bocas beijados
se houvesse descanso em candura
e toda a corneta da verdura
então seria nossa mente
todo um mar de sinais
feito só p'ra quem sente
mas aí estaria a mais,
estaria eu bem errado
e, comigo, toda a gente
quarta-feira, 4 de abril de 2007
Segue o teu destino
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
Ricardo Reis
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
Ricardo Reis
Diário de Bordo ao Opiário
Farto eu do que apodrece
quis ver a vida como apetece
fazer o que queira, pensar
nada, viver deitado na esteira
manso à borda d'água
mas de todos falho e de todos findo
neste mar que não tem bravura
o meu corpo é todo procura
sem encontrar porto ou destino
passam gentes, por sinal
passam cães e macacos
e eu, lavando a vida em pratos
quero fazer o que não é normal
mas a vida humana é curta
e pequena, demais para os actos
de pura loucura, os assassínios
e os suicídios, só fruta
que vendam em qualquer novela
o melhor será não tê-la, mas
que é dela? Não existe! é só farpela
não resiste ao gosto nem a não vê-la
é mais metade de coisa que ficou inacabada
prostrada no chão, de saia levantada
e que já não estende a mão
ah, pudesse dizer uma só palavra
pudesse pensar em querer dizê-la
(seria a fortuna não tê-la), mas não
o meu destino está traçado
desde que mo puseram na mão
Resta-me um consolo, ainda que breve
ter na alma o sono e o sonho leve
doces como um grande bolo
que como com sofreguidão
quis ver a vida como apetece
fazer o que queira, pensar
nada, viver deitado na esteira
manso à borda d'água
mas de todos falho e de todos findo
neste mar que não tem bravura
o meu corpo é todo procura
sem encontrar porto ou destino
passam gentes, por sinal
passam cães e macacos
e eu, lavando a vida em pratos
quero fazer o que não é normal
mas a vida humana é curta
e pequena, demais para os actos
de pura loucura, os assassínios
e os suicídios, só fruta
que vendam em qualquer novela
o melhor será não tê-la, mas
que é dela? Não existe! é só farpela
não resiste ao gosto nem a não vê-la
é mais metade de coisa que ficou inacabada
prostrada no chão, de saia levantada
e que já não estende a mão
ah, pudesse dizer uma só palavra
pudesse pensar em querer dizê-la
(seria a fortuna não tê-la), mas não
o meu destino está traçado
desde que mo puseram na mão
Resta-me um consolo, ainda que breve
ter na alma o sono e o sonho leve
doces como um grande bolo
que como com sofreguidão
Cartas a um Jovem Filósofo IV - princípio e fim
1. De facto, a tradução da Bíblia para o latim perdeu muito daquilo que os gregos lhe tinham posto. Se se escreve "No princípio era o Verbo", parece-me a mim que se dissolve a verdadeira natureza do significado das coisas. Mas o tempo e o espaço são, por si só, dissolventes. A tradução de "Verbum" nasce a partir da substituição do grego "Logos", que é algo muito diferente. "Logos" não quer dizer somente Palavra, mas também Razão, Entendimento, Inteligência, Ciência, para falar só na acepção esotérica.
2. Tudo o que se disse é certo se, e só se, existirem qualidades que se anulem umas às outras. Tomemos alguns exemplos de qualidades: beleza, bondade, justiça, amor. Se assumirmos que as qualidades contrárias (fealdade, maldade, injustiça, ódio) anulam as primeiras, então não será possível encontrar num mesmo indivíduo, sob o mesmo e determinado ambiente, espaço, tempo e constituição genética dois destes contrários que se refiram ao mesmo objecto (amar e odiar alguém ao mesmo tempo, por exemplo). Como esta última proposição não se verifica, resulta que os contrários não se anulam e todas as inferências que possam ser feitas a partir desta são falsas. Mas que natureza têm então os contrários? Ora, vejamos um exemplo: este quadro é preto. Porque é que o quadro é preto? Será porque é composto por uma infinidade numerável de pontos também pretos ou porque não possui nenhum ponto branco? A zebra é branca com riscas pretas, ou preta com riscas brancas? Bem, Einstein talvez dissesse que isso é tudo muito relativo, a observação depende do observador, e portanto ambos os cenários relativos ao referencial 'cor' (que oscila do extremo 'preto'/'n branco' ao extremo 'branco'/'n preto') são interpretações aceitáveis da realidade. Assim, resulta que 'branco' e 'preto' são apenas marcas numa escala de (chamemo-lhe assim) 'cor'. A sua substância, a sua natureza, é a mesma, o que varia é o grau de 'cor' (mais luz/menos luz). Assim, todo o preto tem em si algo do branco, ainda que este não se manifeste, antes permanece latente, e o contrário é válido para o branco. Os contrários podem e existem em simultâneo simplesmente porque são uma e a mesma coisa. Portanto, é perfeitamente possível que Deus contenha em si tudo, o que faria com que ele não precisasse de mudar nada, e lhe bastasse somente ser.
3. Falar de Deus no tempo e no espaço implica pressupor que o tempo e o espaço existam, de facto, coisa que nem Newton, nem Kant, e muito menos Einstein, conseguiram provar. E, lembrando Thomas Kuhn, deve-se dizer que todas as teorias científicas não passam de interpretações a fenómenos. Aliás, nem sequer a própria matemática se safa, veja-se o Teorema da Incompletude de Kurt Gödel. Mas partamos de um exemplo matemático para tentar alcançar o conceito de eternidade. Se Deus se move na eternidade, então talvez possamos dizer que é como se Deus se movesse num tempo finito que tende para o infinito (sucessão infinita de momentos) e num espaço finito que tende para o infinito (sucessão infinita de volumes). Vejamos o espaço. Se admitirmos que o Universo é infinito, então Deus teria forçosamente que se mover em todo o Universo. Se admitirmos que a eternidade pode ser aproximada matematicamente a uma sucessão infinita de momentos, então Deus teria forçosamente que se mover em todos os momentos. Conclusão: Deus teria, assim, que ser tudo em todos os momentos, o próprio Universo. Mas se Deus for mesmo o Universo inteiro, como pode ser Uno se o Universo existe fragmentado? Correcção: não sabemos se o Universo existe fragmentado. Aliás, se a temperatura do Universo é superior ao zero absoluto, visto que a temperatura é movimento de partículas, então até o "espaço" (a parte escura do céu ausente de corpos com uma massa mensurável) não apresenta descontinuidades, mas apenas uma gradação característica de diferentes estados de matéria/energia. E não podemos explicar melhor isto porque não sabemos o que é a energia. Ah, e a análise relativa ao volume está dependente de um Universo a 3 dimensões (outra suposição...).
4. Mas a maior dúvida de todas foi a que Descartes não viu: qual é a diferença entre ser um ser pensante e um ser que é pensado por outro ser como um ser pensante? Somos nós seres pensantes ou seres pensados como pensantes? Ainda não descobri. E também ainda não me souberam responder a esta pergunta. Bem, à falta de melhor, resta-me a dúvida. Mas eu, que duvido de tudo, com esta minha dúvida hiperbólica, nem pela própria dúvida me liberto, já que não sei se esta dúvida que tenho me é válida, nem se me é legítimo duvidar de coisas que não sei, de coisas que não conheço. Parto do pressuposto de que é possível duvidar acerca de tudo, sem aceitar de antemão qualquer realidade, ou qualquer possibilidade de real para além da minha existência. E vivo atormentado como um rato enjaulado a passear na minha roda dentada, e a sofrer com o desgaste que deixa o correr sem sair do mesmo sítio. Mas, se todá a dúvida estiver errada, então isso significa que não é preciso duvidar de nada, significa que não há que compreender nada porque já está tudo esclarecido aos nossos olhos, não há que perceber o porquê porque o porquê se nos mostra como é em campos, e árvores, e flores, e sol, e lua. E portanto não existe qualquer verdade para conhecer, porque a verdade é aquilo que já existe e que já nos está revelado, desvelado e nivelado, apenas corremos atrás do vento tentando agarrá-lo, em vez de procurarmos apreciar a sua fluidez que o leva até onde quer, como quer, quando quer e sem pensar. O princípio é pensar. O final é parar de pensar.
2. Tudo o que se disse é certo se, e só se, existirem qualidades que se anulem umas às outras. Tomemos alguns exemplos de qualidades: beleza, bondade, justiça, amor. Se assumirmos que as qualidades contrárias (fealdade, maldade, injustiça, ódio) anulam as primeiras, então não será possível encontrar num mesmo indivíduo, sob o mesmo e determinado ambiente, espaço, tempo e constituição genética dois destes contrários que se refiram ao mesmo objecto (amar e odiar alguém ao mesmo tempo, por exemplo). Como esta última proposição não se verifica, resulta que os contrários não se anulam e todas as inferências que possam ser feitas a partir desta são falsas. Mas que natureza têm então os contrários? Ora, vejamos um exemplo: este quadro é preto. Porque é que o quadro é preto? Será porque é composto por uma infinidade numerável de pontos também pretos ou porque não possui nenhum ponto branco? A zebra é branca com riscas pretas, ou preta com riscas brancas? Bem, Einstein talvez dissesse que isso é tudo muito relativo, a observação depende do observador, e portanto ambos os cenários relativos ao referencial 'cor' (que oscila do extremo 'preto'/'n branco' ao extremo 'branco'/'n preto') são interpretações aceitáveis da realidade. Assim, resulta que 'branco' e 'preto' são apenas marcas numa escala de (chamemo-lhe assim) 'cor'. A sua substância, a sua natureza, é a mesma, o que varia é o grau de 'cor' (mais luz/menos luz). Assim, todo o preto tem em si algo do branco, ainda que este não se manifeste, antes permanece latente, e o contrário é válido para o branco. Os contrários podem e existem em simultâneo simplesmente porque são uma e a mesma coisa. Portanto, é perfeitamente possível que Deus contenha em si tudo, o que faria com que ele não precisasse de mudar nada, e lhe bastasse somente ser.
3. Falar de Deus no tempo e no espaço implica pressupor que o tempo e o espaço existam, de facto, coisa que nem Newton, nem Kant, e muito menos Einstein, conseguiram provar. E, lembrando Thomas Kuhn, deve-se dizer que todas as teorias científicas não passam de interpretações a fenómenos. Aliás, nem sequer a própria matemática se safa, veja-se o Teorema da Incompletude de Kurt Gödel. Mas partamos de um exemplo matemático para tentar alcançar o conceito de eternidade. Se Deus se move na eternidade, então talvez possamos dizer que é como se Deus se movesse num tempo finito que tende para o infinito (sucessão infinita de momentos) e num espaço finito que tende para o infinito (sucessão infinita de volumes). Vejamos o espaço. Se admitirmos que o Universo é infinito, então Deus teria forçosamente que se mover em todo o Universo. Se admitirmos que a eternidade pode ser aproximada matematicamente a uma sucessão infinita de momentos, então Deus teria forçosamente que se mover em todos os momentos. Conclusão: Deus teria, assim, que ser tudo em todos os momentos, o próprio Universo. Mas se Deus for mesmo o Universo inteiro, como pode ser Uno se o Universo existe fragmentado? Correcção: não sabemos se o Universo existe fragmentado. Aliás, se a temperatura do Universo é superior ao zero absoluto, visto que a temperatura é movimento de partículas, então até o "espaço" (a parte escura do céu ausente de corpos com uma massa mensurável) não apresenta descontinuidades, mas apenas uma gradação característica de diferentes estados de matéria/energia. E não podemos explicar melhor isto porque não sabemos o que é a energia. Ah, e a análise relativa ao volume está dependente de um Universo a 3 dimensões (outra suposição...).
4. Mas a maior dúvida de todas foi a que Descartes não viu: qual é a diferença entre ser um ser pensante e um ser que é pensado por outro ser como um ser pensante? Somos nós seres pensantes ou seres pensados como pensantes? Ainda não descobri. E também ainda não me souberam responder a esta pergunta. Bem, à falta de melhor, resta-me a dúvida. Mas eu, que duvido de tudo, com esta minha dúvida hiperbólica, nem pela própria dúvida me liberto, já que não sei se esta dúvida que tenho me é válida, nem se me é legítimo duvidar de coisas que não sei, de coisas que não conheço. Parto do pressuposto de que é possível duvidar acerca de tudo, sem aceitar de antemão qualquer realidade, ou qualquer possibilidade de real para além da minha existência. E vivo atormentado como um rato enjaulado a passear na minha roda dentada, e a sofrer com o desgaste que deixa o correr sem sair do mesmo sítio. Mas, se todá a dúvida estiver errada, então isso significa que não é preciso duvidar de nada, significa que não há que compreender nada porque já está tudo esclarecido aos nossos olhos, não há que perceber o porquê porque o porquê se nos mostra como é em campos, e árvores, e flores, e sol, e lua. E portanto não existe qualquer verdade para conhecer, porque a verdade é aquilo que já existe e que já nos está revelado, desvelado e nivelado, apenas corremos atrás do vento tentando agarrá-lo, em vez de procurarmos apreciar a sua fluidez que o leva até onde quer, como quer, quando quer e sem pensar. O princípio é pensar. O final é parar de pensar.
terça-feira, 3 de abril de 2007
O Tesouro
Era uma vez um rapazito que morava numa terra chamada Parvónia Alentejana - mesmo ali ao pé de Chora-Que-Logo-Bebes. Era um rapazito como qualquer rapazito da sua idade, e até gostava de falar, o problema é que ninguém o ouvia. Como na Parvónia nunca acontecia nada (era daquelas terras em que nunca acontece nada), e como na Parvónia não se fazia nada (era daquelas terras em que não se faz nada), então ele resolveu passar o tempo que lhe restava a brincar com a sua querida Parvónia. De tanto brincar com ela, começou a pensar nela. De tanto pensar nela, começou a inventar sobre ela. De tanto inventar sobre ela, começou a conhecer novas pessoas, que o fizeram brincar mais, pensar mais, e inventar mais. E tudo servia para inventar. As aulas, os colegas, os conhecidos, os jogos, a internet, os livros, a música, cartas, filmes, concursos, revistas, até mesmo o amor. E como estava preso por uma corrente de ferro à Parvónia, aí se deixou ficar. Mas de vez em quando lá ele puxava a corrente para ver se ela se saltava. Claro que toda a gente se ria dele porque quem vive na Parvónia está plenamente satisfeito com tudo, porque sabe tudo o que existe no mundo. O que vale é que o rapazito ouvia mal, mas via muito bem. Então começou a notar que, de cada vez que puxava a corrente, ela cedia um pouco. "Bem, pode ser que um dia ele quebre". E lá andava ele. Passou muito tempo, muito tempo. E até a Parvónia tinha envelhecido. Ele tinha deixado de ser rapazito, e passou a ser rapaz. Quanto mais puxava a corrente, mais se riam e lhe cuspiam em cima. Ou então mentiam-lhe, e depois não lhe diziam nada. De cada vez que faziam isso, a corrente pesava-lhe mil vezes mais do que da última vez. Mas ele continuava. Tinha aprendido sozinho. Um certo dia, como os outros, porque na Parvónia todos os dias são iguais, e todas as pessoas são iguais, apenas umas são mais iguais que outras, ele olhou em volta e viu que havia mais gente a querer romper a corrente. E havia mesmo pessoas que já a tinham rompido. Então, se calhar, até era possível. "Então deixa lá experimentar". E nesse momento, soltou-se e foi correr o mundo. Nunca mais ninguém o viu. E é curioso, alguns até sentiam a falta dele. E foi numa dessas suas viagens que o rapaz que hoje é homem me encontrou e me contou esta história. Quer dizer, eu já tinha ouvido falar nele, e quis arriscar sozinho em ir pelo meu próprio pé, embora não o conhecesse de lado nenhum, perguntar-lhe como é que se chamava. Qual não foi o meu espanto quando o homem me contou quem era! Foi realmente uma honra ter recebido esse tesouro tão grande. Já me tinham falado que esses caminhantes são brutos, egoístas e insensíveis, uns autênticos macacos. Mas essa história parecia-me rebuscada, ou antes, sem nenhuma busca. Afinal o tesouro era tão grande como ele, o homem era alto, nobre, gentil, e bem-falante, simpático. Admirei-me porque era raro encontrar alguém assim, as pessoas estão tão habituadas a andar sem pensar, e a pensar sem andar. Foi aí que o homem me disse: "Agora que ouviste a minha história, aí tens o meu tesouro. Muitos falam dele mas poucos sabem o que é. Não se olha, mas pode ser visto. Não se ouve, mas pode ser escutado. Não se chama, porque não tem nome, mas pode ser invocado. Não tem forma ou cor, ou aspecto exterior, mas pode ser reconhecido. Não se toca, mas sente-se. E, já que foste capaz de chegar até aqui pela tua própria mão, podes ficar com ele. Mas peço-te o seguinte: não o podes guardar, senão ele desaparece, envelhece com a pessoa que se desvanece. A seu tempo terás de o passar também a alguém que seja capaz de te perguntar quem és." E ele desapareceu. Nunca mais o vi. Às vezes, quando me sinto bem, ainda me lembro dele, e parece que o vejo a piscar-me o olho. Agora a minha vida é outra. Ainda não encontrei a quem passar o tesouro. Quando vejo alguém que não conheço penso "Será que é desta?". Mas a verdade é que nunca vieram falar comigo, por vergonha ou por cerimónia, por falso pudor ou por egoísmo, por mau humor ou por não terem tempo para isso. Eu vou esperando, deambulando por aqui e por ali, sem destino. Às vezes vem alguém, mas não chega a perguntar nada. Enfim, que sei eu da vida? Qualquer dia aparece alguém. Sei que sim. Se não aparecer, morre o tesouro, mas não o tesouro que há em mim.
Todos os homens não são iguais
Proclama-se o seguinte:
«TODOS OS HOMENS NÃO SÃO IGUAIS.»
e apresentam-se aqui os três argumentos fundamentais que permitem explicar o supracitado. Foram utilizados três argumentos de três naturezas diferentes, de modo a que não pudesse haver dúvida nenhuma quanto à justificação da proposição.
ARGUMENTO N.º 1 - O Argumento Físico
Todos os homens não são iguais porque não existem dois homens iguais fisicamente. Não se trata aqui de estabelecer a distinção entre homens e mulheres. E, para que não se comece aqui a formar a sombra da dúvida, proclama-se da seguinte forma: Não existem dois Homens iguais fisicamente. Nem as mulheres são iguais aos homens, nem os homens são iguais às mulheres, é certo. Mas nem cada homem é igual a outro homem e nem cada mulher é igual a outra mulher. Para Homens de constituição genética diferente, esta proposição é óbvia: diferentes constituições genéticas expressam-se de modos diferentes. Mas podemos ainda pensar no caso dos gémeos verdadeiros, ditos univitelinos, que possuem a mesma constituição genética. Nesse caso, e para que não restem dúvidas, proclama-se: Nem mesmo são iguais os gémeos verdadeiros. O que a ciência nos mostra é exactamente que, apesar de iguais constituições genéticas, estas podem sofrer alterações (mutações) ao longo do tempo. Mas este argumento pode ser contornado se se disser que, na ausência de tais mutações, os gémeos univitelinos são iguais. Para isso, proclama-se o seguinte: Todos os Homens são diferentes fisicamente porque a expressão do seu conteúdo genético é diferente consoante os estímulos que recebem do meio em que se encontram. Os desenvolvimentos na epigenética permitem-nos concluir isso, e também os estudos psicológicos de casos. Existe adaptação individual dos Homens ao ambiente em que se encontram. Os conteúdos genéticos que um Homem expressa não são iguais aos conteúdos genéticos que outro Homem expressa. Apenas se dois gémeos univitelinos forem submetidos aos mesmos estímulos ambientais pela mesma sequência espacial e temporal é que ambos poderiam ser iguais. Ora, como esses gémeos não andam agarrados durante toda a sua vida, eles nunca podem ser iguais. Mas ainda o caso particular de gémeos univitelinos siameses não separados pode fazer-nos crer que esses seriam iguais. Proclama-se o seguinte: Nem mesmo os gémeos univitelinos siameses não separados são iguais fisicamente porque o simples facto de permanecerem agarrados um ao outro leva a que os estímulos do meio, embora sendo os mesmos para ambos, nas ocasiões em que são distribuídos de forma diferencial, isto é, quando são distribuídos em diferentes quantidades, levam a diferentes expressões genéticas. Como os estímulos do ambiente são, pela sua própria natureza, caóticos, dada a distribuição geológica e biológica do planeta, então a proposição anterior é confirmada eliminando a possibilidade da existência de estímulos ambientais constantes e iguais em sentido e direcção, distribuição qualitativa e quantitativa, pelo espaço e pelo tempo.
ARGUMENTO N.º 2 - O Argumento Psicológico
Todos os homens não são iguais porque não existem dois homens com igual psiquismo. Para além de haver como prova o psiquismo de todos os homens do mundo, sujeito à mudança no tempo e no espaço, o homem, como já mostrou Piaget, nunca visualiza uma situação como ela é, mas sim como ela é para si. Isto é, cada homem nunca vê a realidade, apenas o fenómeno, apenas aquilo que dá significado ao captar de cada situação. Assim é formado o psiquismo individual e assim se constituem as redes de associação psíquicas já desde o tempo de Freud conhecidas. Para cada estímulo do ambiente, as múltiplas percepções desse estímulo são infinitas, porque são construídas com base nas percepções anteriores e nas interpretações dessas mesmas percepções, também elas únicas a cada homem. O psiquismo humano interfere no acto de conhecer, de tal modo que é impossível que dois interpretem exactamente da mesma maneira todos os estímulos que cheguem até eles. Este é o grande erro da Sociologia, que procura explicar o indivíduo através do Todo, quando deveria antes fazer o caminho inverso.
ARGUMENTO N.º 3 - O Argumento Espiritual
Todos os homens não são iguais porque não existem dois homens com o mesmo espírito. Se todos os homens são filhos de deus, e deus é infinito, e igual a si mesmo, portanto, não podendo deixar de ser o que é, então todos os seus filhos deveriam participar da mesma natureza do seu pai. Errado! Deus é infinito porque se move na eternidade; ora, os homens movem-se num contexto espácio-temporal, finito. Portanto, nunca poderiam ser infinitos. Deus é sempre igual a si mesmo, e portanto cada parte de deus é sempre igual a outra parte que se lhe queira comparar. Mas os homens nascem e morrem em diferentes contextos, e são, portanto, finitos. Não podem expressar o seu carácter infinito, se é que o têm, porque estão condenados à finitude que é ter de nascer e ter de morrer. Assim, cada homem não pode, numa vida humana, expressar um carácter infinito, mas apenas um carácter finito. Mas se admitimos que os homens são realmente filhos de deus, então também o que eles expressam, isto é, também os seus filhos são filhos de deus, porque todos provêm da mesma origem. Assim, apesar do seu carácter divino, os homens expressam não o infinito da divindade, visto que só o poderiam fazer na eternidade, e, nesse caso, seriam o próprio deus, mas apenas expressam um aspecto dessa divindade, que é tudo o que é possível expressar num contexto finito. Como os contextos de finitude entre os homens nunca são iguais (os estímulos do ambiente), então cada homem expressa diferentes aspectos da mesma divindade e, logo, não é possível que cada um deles seja igual espiritualmente.
Proclama-se, assim, que
Todos os Homens são diferentes física, psíquica e espiritualmente. Cada um deles é único no seu modo de expressar na obra física, na obra psicológica e na obra espiritual. Nenhuma delas é igual à outra, e nenhuma delas é igual entre eles.
TUDO É UM OUTRO.
TUDO É ÚNICO.
TUDO É UM.
«TODOS OS HOMENS NÃO SÃO IGUAIS.»
e apresentam-se aqui os três argumentos fundamentais que permitem explicar o supracitado. Foram utilizados três argumentos de três naturezas diferentes, de modo a que não pudesse haver dúvida nenhuma quanto à justificação da proposição.
ARGUMENTO N.º 1 - O Argumento Físico
Todos os homens não são iguais porque não existem dois homens iguais fisicamente. Não se trata aqui de estabelecer a distinção entre homens e mulheres. E, para que não se comece aqui a formar a sombra da dúvida, proclama-se da seguinte forma: Não existem dois Homens iguais fisicamente. Nem as mulheres são iguais aos homens, nem os homens são iguais às mulheres, é certo. Mas nem cada homem é igual a outro homem e nem cada mulher é igual a outra mulher. Para Homens de constituição genética diferente, esta proposição é óbvia: diferentes constituições genéticas expressam-se de modos diferentes. Mas podemos ainda pensar no caso dos gémeos verdadeiros, ditos univitelinos, que possuem a mesma constituição genética. Nesse caso, e para que não restem dúvidas, proclama-se: Nem mesmo são iguais os gémeos verdadeiros. O que a ciência nos mostra é exactamente que, apesar de iguais constituições genéticas, estas podem sofrer alterações (mutações) ao longo do tempo. Mas este argumento pode ser contornado se se disser que, na ausência de tais mutações, os gémeos univitelinos são iguais. Para isso, proclama-se o seguinte: Todos os Homens são diferentes fisicamente porque a expressão do seu conteúdo genético é diferente consoante os estímulos que recebem do meio em que se encontram. Os desenvolvimentos na epigenética permitem-nos concluir isso, e também os estudos psicológicos de casos. Existe adaptação individual dos Homens ao ambiente em que se encontram. Os conteúdos genéticos que um Homem expressa não são iguais aos conteúdos genéticos que outro Homem expressa. Apenas se dois gémeos univitelinos forem submetidos aos mesmos estímulos ambientais pela mesma sequência espacial e temporal é que ambos poderiam ser iguais. Ora, como esses gémeos não andam agarrados durante toda a sua vida, eles nunca podem ser iguais. Mas ainda o caso particular de gémeos univitelinos siameses não separados pode fazer-nos crer que esses seriam iguais. Proclama-se o seguinte: Nem mesmo os gémeos univitelinos siameses não separados são iguais fisicamente porque o simples facto de permanecerem agarrados um ao outro leva a que os estímulos do meio, embora sendo os mesmos para ambos, nas ocasiões em que são distribuídos de forma diferencial, isto é, quando são distribuídos em diferentes quantidades, levam a diferentes expressões genéticas. Como os estímulos do ambiente são, pela sua própria natureza, caóticos, dada a distribuição geológica e biológica do planeta, então a proposição anterior é confirmada eliminando a possibilidade da existência de estímulos ambientais constantes e iguais em sentido e direcção, distribuição qualitativa e quantitativa, pelo espaço e pelo tempo.
ARGUMENTO N.º 2 - O Argumento Psicológico
Todos os homens não são iguais porque não existem dois homens com igual psiquismo. Para além de haver como prova o psiquismo de todos os homens do mundo, sujeito à mudança no tempo e no espaço, o homem, como já mostrou Piaget, nunca visualiza uma situação como ela é, mas sim como ela é para si. Isto é, cada homem nunca vê a realidade, apenas o fenómeno, apenas aquilo que dá significado ao captar de cada situação. Assim é formado o psiquismo individual e assim se constituem as redes de associação psíquicas já desde o tempo de Freud conhecidas. Para cada estímulo do ambiente, as múltiplas percepções desse estímulo são infinitas, porque são construídas com base nas percepções anteriores e nas interpretações dessas mesmas percepções, também elas únicas a cada homem. O psiquismo humano interfere no acto de conhecer, de tal modo que é impossível que dois interpretem exactamente da mesma maneira todos os estímulos que cheguem até eles. Este é o grande erro da Sociologia, que procura explicar o indivíduo através do Todo, quando deveria antes fazer o caminho inverso.
ARGUMENTO N.º 3 - O Argumento Espiritual
Todos os homens não são iguais porque não existem dois homens com o mesmo espírito. Se todos os homens são filhos de deus, e deus é infinito, e igual a si mesmo, portanto, não podendo deixar de ser o que é, então todos os seus filhos deveriam participar da mesma natureza do seu pai. Errado! Deus é infinito porque se move na eternidade; ora, os homens movem-se num contexto espácio-temporal, finito. Portanto, nunca poderiam ser infinitos. Deus é sempre igual a si mesmo, e portanto cada parte de deus é sempre igual a outra parte que se lhe queira comparar. Mas os homens nascem e morrem em diferentes contextos, e são, portanto, finitos. Não podem expressar o seu carácter infinito, se é que o têm, porque estão condenados à finitude que é ter de nascer e ter de morrer. Assim, cada homem não pode, numa vida humana, expressar um carácter infinito, mas apenas um carácter finito. Mas se admitimos que os homens são realmente filhos de deus, então também o que eles expressam, isto é, também os seus filhos são filhos de deus, porque todos provêm da mesma origem. Assim, apesar do seu carácter divino, os homens expressam não o infinito da divindade, visto que só o poderiam fazer na eternidade, e, nesse caso, seriam o próprio deus, mas apenas expressam um aspecto dessa divindade, que é tudo o que é possível expressar num contexto finito. Como os contextos de finitude entre os homens nunca são iguais (os estímulos do ambiente), então cada homem expressa diferentes aspectos da mesma divindade e, logo, não é possível que cada um deles seja igual espiritualmente.
Proclama-se, assim, que
Todos os Homens são diferentes física, psíquica e espiritualmente. Cada um deles é único no seu modo de expressar na obra física, na obra psicológica e na obra espiritual. Nenhuma delas é igual à outra, e nenhuma delas é igual entre eles.
TUDO É UM OUTRO.
TUDO É ÚNICO.
TUDO É UM.
segunda-feira, 2 de abril de 2007
Poema em linha recta
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Álvaro de Campos
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Álvaro de Campos
domingo, 1 de abril de 2007
Comboio de corda
O coração é comboio de corda
Vive animando a razão
é na razão que acorda
e que faz estender a mão
o coração nunca mente
a mentira é na cabeça
no peito só o que sente
e o resto que adormeça
a lucidez é tesoiro
mas quem vê é o sonho
vejo as asas no besoiro
e vou para onde as ponho
Vive animando a razão
é na razão que acorda
e que faz estender a mão
o coração nunca mente
a mentira é na cabeça
no peito só o que sente
e o resto que adormeça
a lucidez é tesoiro
mas quem vê é o sonho
vejo as asas no besoiro
e vou para onde as ponho
Subscrever:
Mensagens (Atom)