quarta-feira, 4 de abril de 2007

Cartas a um Jovem Filósofo IV - princípio e fim

1. De facto, a tradução da Bíblia para o latim perdeu muito daquilo que os gregos lhe tinham posto. Se se escreve "No princípio era o Verbo", parece-me a mim que se dissolve a verdadeira natureza do significado das coisas. Mas o tempo e o espaço são, por si só, dissolventes. A tradução de "Verbum" nasce a partir da substituição do grego "Logos", que é algo muito diferente. "Logos" não quer dizer somente Palavra, mas também Razão, Entendimento, Inteligência, Ciência, para falar só na acepção esotérica.

2. Tudo o que se disse é certo se, e só se, existirem qualidades que se anulem umas às outras. Tomemos alguns exemplos de qualidades: beleza, bondade, justiça, amor. Se assumirmos que as qualidades contrárias (fealdade, maldade, injustiça, ódio) anulam as primeiras, então não será possível encontrar num mesmo indivíduo, sob o mesmo e determinado ambiente, espaço, tempo e constituição genética dois destes contrários que se refiram ao mesmo objecto (amar e odiar alguém ao mesmo tempo, por exemplo). Como esta última proposição não se verifica, resulta que os contrários não se anulam e todas as inferências que possam ser feitas a partir desta são falsas. Mas que natureza têm então os contrários? Ora, vejamos um exemplo: este quadro é preto. Porque é que o quadro é preto? Será porque é composto por uma infinidade numerável de pontos também pretos ou porque não possui nenhum ponto branco? A zebra é branca com riscas pretas, ou preta com riscas brancas? Bem, Einstein talvez dissesse que isso é tudo muito relativo, a observação depende do observador, e portanto ambos os cenários relativos ao referencial 'cor' (que oscila do extremo 'preto'/'n branco' ao extremo 'branco'/'n preto') são interpretações aceitáveis da realidade. Assim, resulta que 'branco' e 'preto' são apenas marcas numa escala de (chamemo-lhe assim) 'cor'. A sua substância, a sua natureza, é a mesma, o que varia é o grau de 'cor' (mais luz/menos luz). Assim, todo o preto tem em si algo do branco, ainda que este não se manifeste, antes permanece latente, e o contrário é válido para o branco. Os contrários podem e existem em simultâneo simplesmente porque são uma e a mesma coisa. Portanto, é perfeitamente possível que Deus contenha em si tudo, o que faria com que ele não precisasse de mudar nada, e lhe bastasse somente ser.

3. Falar de Deus no tempo e no espaço implica pressupor que o tempo e o espaço existam, de facto, coisa que nem Newton, nem Kant, e muito menos Einstein, conseguiram provar. E, lembrando Thomas Kuhn, deve-se dizer que todas as teorias científicas não passam de interpretações a fenómenos. Aliás, nem sequer a própria matemática se safa, veja-se o Teorema da Incompletude de Kurt Gödel. Mas partamos de um exemplo matemático para tentar alcançar o conceito de eternidade. Se Deus se move na eternidade, então talvez possamos dizer que é como se Deus se movesse num tempo finito que tende para o infinito (sucessão infinita de momentos) e num espaço finito que tende para o infinito (sucessão infinita de volumes). Vejamos o espaço. Se admitirmos que o Universo é infinito, então Deus teria forçosamente que se mover em todo o Universo. Se admitirmos que a eternidade pode ser aproximada matematicamente a uma sucessão infinita de momentos, então Deus teria forçosamente que se mover em todos os momentos. Conclusão: Deus teria, assim, que ser tudo em todos os momentos, o próprio Universo. Mas se Deus for mesmo o Universo inteiro, como pode ser Uno se o Universo existe fragmentado? Correcção: não sabemos se o Universo existe fragmentado. Aliás, se a temperatura do Universo é superior ao zero absoluto, visto que a temperatura é movimento de partículas, então até o "espaço" (a parte escura do céu ausente de corpos com uma massa mensurável) não apresenta descontinuidades, mas apenas uma gradação característica de diferentes estados de matéria/energia. E não podemos explicar melhor isto porque não sabemos o que é a energia. Ah, e a análise relativa ao volume está dependente de um Universo a 3 dimensões (outra suposição...).

4. Mas a maior dúvida de todas foi a que Descartes não viu: qual é a diferença entre ser um ser pensante e um ser que é pensado por outro ser como um ser pensante? Somos nós seres pensantes ou seres pensados como pensantes? Ainda não descobri. E também ainda não me souberam responder a esta pergunta. Bem, à falta de melhor, resta-me a dúvida. Mas eu, que duvido de tudo, com esta minha dúvida hiperbólica, nem pela própria dúvida me liberto, já que não sei se esta dúvida que tenho me é válida, nem se me é legítimo duvidar de coisas que não sei, de coisas que não conheço. Parto do pressuposto de que é possível duvidar acerca de tudo, sem aceitar de antemão qualquer realidade, ou qualquer possibilidade de real para além da minha existência. E vivo atormentado como um rato enjaulado a passear na minha roda dentada, e a sofrer com o desgaste que deixa o correr sem sair do mesmo sítio. Mas, se todá a dúvida estiver errada, então isso significa que não é preciso duvidar de nada, significa que não há que compreender nada porque já está tudo esclarecido aos nossos olhos, não há que perceber o porquê porque o porquê se nos mostra como é em campos, e árvores, e flores, e sol, e lua. E portanto não existe qualquer verdade para conhecer, porque a verdade é aquilo que já existe e que já nos está revelado, desvelado e nivelado, apenas corremos atrás do vento tentando agarrá-lo, em vez de procurarmos apreciar a sua fluidez que o leva até onde quer, como quer, quando quer e sem pensar. O princípio é pensar. O final é parar de pensar.

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