terça-feira, 3 de abril de 2007
O Tesouro
Era uma vez um rapazito que morava numa terra chamada Parvónia Alentejana - mesmo ali ao pé de Chora-Que-Logo-Bebes. Era um rapazito como qualquer rapazito da sua idade, e até gostava de falar, o problema é que ninguém o ouvia. Como na Parvónia nunca acontecia nada (era daquelas terras em que nunca acontece nada), e como na Parvónia não se fazia nada (era daquelas terras em que não se faz nada), então ele resolveu passar o tempo que lhe restava a brincar com a sua querida Parvónia. De tanto brincar com ela, começou a pensar nela. De tanto pensar nela, começou a inventar sobre ela. De tanto inventar sobre ela, começou a conhecer novas pessoas, que o fizeram brincar mais, pensar mais, e inventar mais. E tudo servia para inventar. As aulas, os colegas, os conhecidos, os jogos, a internet, os livros, a música, cartas, filmes, concursos, revistas, até mesmo o amor. E como estava preso por uma corrente de ferro à Parvónia, aí se deixou ficar. Mas de vez em quando lá ele puxava a corrente para ver se ela se saltava. Claro que toda a gente se ria dele porque quem vive na Parvónia está plenamente satisfeito com tudo, porque sabe tudo o que existe no mundo. O que vale é que o rapazito ouvia mal, mas via muito bem. Então começou a notar que, de cada vez que puxava a corrente, ela cedia um pouco. "Bem, pode ser que um dia ele quebre". E lá andava ele. Passou muito tempo, muito tempo. E até a Parvónia tinha envelhecido. Ele tinha deixado de ser rapazito, e passou a ser rapaz. Quanto mais puxava a corrente, mais se riam e lhe cuspiam em cima. Ou então mentiam-lhe, e depois não lhe diziam nada. De cada vez que faziam isso, a corrente pesava-lhe mil vezes mais do que da última vez. Mas ele continuava. Tinha aprendido sozinho. Um certo dia, como os outros, porque na Parvónia todos os dias são iguais, e todas as pessoas são iguais, apenas umas são mais iguais que outras, ele olhou em volta e viu que havia mais gente a querer romper a corrente. E havia mesmo pessoas que já a tinham rompido. Então, se calhar, até era possível. "Então deixa lá experimentar". E nesse momento, soltou-se e foi correr o mundo. Nunca mais ninguém o viu. E é curioso, alguns até sentiam a falta dele. E foi numa dessas suas viagens que o rapaz que hoje é homem me encontrou e me contou esta história. Quer dizer, eu já tinha ouvido falar nele, e quis arriscar sozinho em ir pelo meu próprio pé, embora não o conhecesse de lado nenhum, perguntar-lhe como é que se chamava. Qual não foi o meu espanto quando o homem me contou quem era! Foi realmente uma honra ter recebido esse tesouro tão grande. Já me tinham falado que esses caminhantes são brutos, egoístas e insensíveis, uns autênticos macacos. Mas essa história parecia-me rebuscada, ou antes, sem nenhuma busca. Afinal o tesouro era tão grande como ele, o homem era alto, nobre, gentil, e bem-falante, simpático. Admirei-me porque era raro encontrar alguém assim, as pessoas estão tão habituadas a andar sem pensar, e a pensar sem andar. Foi aí que o homem me disse: "Agora que ouviste a minha história, aí tens o meu tesouro. Muitos falam dele mas poucos sabem o que é. Não se olha, mas pode ser visto. Não se ouve, mas pode ser escutado. Não se chama, porque não tem nome, mas pode ser invocado. Não tem forma ou cor, ou aspecto exterior, mas pode ser reconhecido. Não se toca, mas sente-se. E, já que foste capaz de chegar até aqui pela tua própria mão, podes ficar com ele. Mas peço-te o seguinte: não o podes guardar, senão ele desaparece, envelhece com a pessoa que se desvanece. A seu tempo terás de o passar também a alguém que seja capaz de te perguntar quem és." E ele desapareceu. Nunca mais o vi. Às vezes, quando me sinto bem, ainda me lembro dele, e parece que o vejo a piscar-me o olho. Agora a minha vida é outra. Ainda não encontrei a quem passar o tesouro. Quando vejo alguém que não conheço penso "Será que é desta?". Mas a verdade é que nunca vieram falar comigo, por vergonha ou por cerimónia, por falso pudor ou por egoísmo, por mau humor ou por não terem tempo para isso. Eu vou esperando, deambulando por aqui e por ali, sem destino. Às vezes vem alguém, mas não chega a perguntar nada. Enfim, que sei eu da vida? Qualquer dia aparece alguém. Sei que sim. Se não aparecer, morre o tesouro, mas não o tesouro que há em mim.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário