quarta-feira, 19 de março de 2008

eis a mestria de Cesário Verde

[O Guardador de Rebanhos]


III

Ao entardecer debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas pessoas,
É o de quem olha para as árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem não anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...


Alberto Caeiro



Demasiado objectivo? Nunca é demais salutar. Cesário Verde andava olhando para as coisas e reparando realmente nelas. Os outros só reparavam naquilo que queriam ver. Onde uns viam só jornalistas, burguesias e mordomias via o Cesário a rude e graciosa força do campo, a energia sadia que emanava das frontes das mulheres que vendiam hortaliça e fruta. Não admira que tenha sido malquisto na sua altura: ninguém o entendia. Falavam línguas de mundos opostos. Ele, via só o que via. Os outros, viam aquilo que tinham na cabeça. E pior que ver o que tinham na cabeça, eles viam as ideias com que a tinham forrado para deixar de ver. Neste aspecto é Cesário a personificação do filósofo que se liberta do escuro da sua caverna. E não só ele se liberta porque vê: ele procura também libertar os outros, e por isso escreve. Inspiração que dá na alma ou inclinação para as Letras, cumpria-se vendo e escrevendo o que via. Pena é que poucos conseguissem ver a realidade tão bem como ele sobre ela discorria.

Mas nem só de real vive o homem, e Cesário sabia isso muito bem. Contemporâneo das estéticas realistas, Cesário vai beber inspiração nelas para recriar pela palavra o real quotidiano; é contudo mais importante a atitude que o poeta imprime de seguida no cerne desse real observável: a transfiguração imaginadora. Cesário parte do real para transcendê-lo; não o apresenta apenas segundo aquilo que é directamente observável, procura mesmo transformar o comum e o ordinário numa obra de arte, numa fonte de contemplação estética. Assim que um determinado elemento do quotidiano, observável, lhe entra pelos olhos dentro e consegue esbarrar na fronteira entre observado e sonhado, a sua imaginação transmuta a realidade e dá-lhe mesmo a dimensão do sonho. Poder-se-á dizer que a realidade é transmutada, exactamente como num processo alquímico, do mais vil metal para o metal mais precioso; ou que o sonho que vive à larga na imaginação é transposto para esse mesmo real observável, e é na realidade que se cumpre - ainda que apenas no plano conceptual que é o ventre de todos os ideais. Tais elementos não são comuns a um paradigma estético como o do Realismo: para os realistas, só aquilo que é directamente observável, ou do qual se pode ter experiência directa pelos cinco sentidos exteriores, importa contemplar. Assim, Cesário abrange não só o seu paradigma estético incluindo elementos marcadamente impressionistas - e impressionistas aqui enquanto derivantes da impressão subjectiva e individual, única, da imaginação do poeta - como também o paradigma estético vigente naquilo que ao poeta era contemporâneo. Cesário mostra-se, portanto, tão homem do seu presente - o observável - como do futuro - a imaginação - , e transcende tanto no plano literário como no plano da sua própria vida física os cânones que limitam cada indivíduo a expressar-se do melhor modo que se acha seu em cada momento.

2 comentários:

Cataclismo Cerebral disse...

Pensamento muito bem elaborado, com uma essência muito bela. Concordo absolutamente...

Daniel disse...

a atitude do nosso amigo Cesário tem muito que ver com a atitude do filósofo que se liberta da escuridão da caverna, exactamente como na alegoria que Platão usou para explicar o mundo em que nós vivemos. Cesário é o filósofo do real quotidiano. Mas como nasceu português tem nele muito mais que isso: não só se limita a ver o real tal como ele se apresenta, mas transcende-lo: faz do comum uma obra de arte. Esta é também a verdadeira atitude alquimista, de converter aquilo que não tem qualquer valor naquilo que de mais valioso há. Não admira então que seja, ele próprio, um dos mestres de Pessoa - e sobretudo um dos mestres de Alberto Caeiro.