segunda-feira, 10 de março de 2008

Ode ao Pedro Nunes

por vezes reparo em coincidências terríveis que o mundo me põe mesmo à frente dos olhos, e que estão aí à frente de todos os que os souberem usar: este Sábado foi a grande manifestação, não só grande por ter levado tanto professor descontente a manifestar-se junto ao grandioso Terreiro do Paço - e que belo espectáculo deve ter sido aquele - , mas sobretudo porque é feito em justo acto de defesa contra as políticas economicistas e caducas de uma mulher que nem tem cara para que lhe chamem de ministra. A nossa sinistra (chamar-lhe-emos sinistra em vez de ministra porque é um nome que lhe assenta mesmo bem, e fazendo a devida vénia ao nosso caríssimo colaborador mental Kaosinthegarden que tantas e boas gargalhadas nos proporciona todos os dias, e especialmente em relação a esta triste figura), dizia eu, a nossa boa e bela sinistra, qual bruxa disfarçada de fada de encantar, permanece estoicamente - que digo eu?! Permanece que nem esqueleto sem músculos, que nem marioneta sem titereiro, que nem corpo sem alma - e permanece sempre no lugar onde a puseram, pronta a arrasar com o que resta da educação em Portugal. Querem formar bons autómatos lusos, e visto que a nossa manif, a nossa e a de todos nós, portugueses, os verdadeiros lusos; visto que essa manif atingiu proporções gigantescas (e de tal modo assim foi que nem mesmo um cego-surdo-mudo pôde ficar indiferente), logo tratou o nosso serviço de televisão pública pela mão da RTP1 de nos presentear hoje, Domingo, com um belo programa sobre o Liceu Pedro Nunes. Olhem só que maravilha, tanta gente famosa que por ali passou! Olha o Daniel Sampaio, o Luis Represas, o Nuno Crato, a Ana Zanatti, o João Caraça. Caraças, pá! Parece que para se ser alguém na vida é preciso ter andado no Liceu Pedro Nunes, ou no Liceu Camões, ou no Liceu Passos Manuel. É tão bela a educação em Portugal! Não há ninguém que esteja descontente! Temos a melhor educação do mundo e arredores! Os alunos do Pedro Nunes têm à sua disposição tanto, tanto, tanto! Têm aulas de pintura e de teatro, têm cinema e têm orfeão, têm muita música e salas, salões de baile, salões de concerto, têm até professores que estudam no estrangeiro - ah, que divina virtude, que supremíssima e magnânima felicidade estudar fora do país onde se nasceu e tornar a ele qual filho pródigo - , têm professores que são para os alunos os seus melhores amigos, ninguém se trata mal ou se zanga, ninguém manifesta desagrado, ninguém suspira de perdição ou de fraqueza: tudo é belo e bom, tudo é cultura, tudo é sarau, tudo é sessão, tudo é poesia e poeta, tudo é ginástica e arte, tudo é a suprema felicidade de quem já nasceu com tudo e não teve nada mais do que aquilo a que tem direito e que sempre teve, por entre os anos, por entre os séculos, por entre as árvores genealógicas, por entre e por dentro de tudo e de todos, Tudo É Igual E O Mesmo Ideal! A manifestação dos professores não pesa nada porque era de alegria! Nascem filhós nas pedras da calçada! E o Tejo é uma calda de açúcar! Grande Portugal! Viva, Viva, Viva!

Fora do Liceu Pedro Nunes, fora do Liceu Camões, fora do Liceu Passos Manuel, fora do Colégio Luso-Francês, fora do Colégio Luso-Alemão, fora do Colégio Luso-Chinês, fora do Colégio Luso-Britânico, fora do Colégio Militar-e-Demente, fora do Cu-Légio e do Cu-Régio, fora desses e de todos os outros pedincham moribundos quintiliões, quatriliões, triliões, biliões, milhões e milhares de escolas de segunda, terceira, quarta e quinta categoria de quem não reza a história. O Fernando Rosas não andou lá. O Presidente da República nunca cortou lá uma fita. A Ministra da Educação nunca deu lá um peido. E, portanto, conclui-se facilmente que tudo o resto não é nada. Pena é que o resto seja, afinal, tudo. Enquanto não levarmos a instrução a todas as escolas não haverá nada, e continuará a não haver nada. Enquanto houver um aluno que não puder aprender teatro não descansaremos. Enquanto houver um aluno que não puder aprender a tocar um instrumento não descansaremos. Enquanto houver um aluno que não puder aprender cantar não descansaremos. Enquanto houver um aluno que queira concretizar a sua liberdade de alguma maneira e isso lhe for negado pela instituição que o deveria livremente instruir segundo a sua vontade, não descansaremos; e não nos cansaremos de deitar abaixo todos os muros do medo, todos os muros da ignorância, todos os muros da falsidade e da hipocrisia; não nos cansaremos de deitar abaixo a poeira com que nos querem cegar os olhos; não nos cansaremos de destruir as cátedras e os doutores; não nos cansaremos de deitar abaixo as paredes do Liceu Pedro Nunes para que o Liceu Pedro Nunes seja o mundo inteiro, e para que todos possam ter acesso livre e segundo a sua vontade àquilo que ciosamente se enclausura, se oprime e se comprime em liceus etiquetados. Abaixo o Pedro Nunes! Abaixo o Camões! Abaixo as paredes com que nos querem asfixiar! Nunca e jamais nos renderemos de acreditar.

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