terça-feira, 27 de novembro de 2007

ATRAVESSIA NOMEU DESCERTO

Zé Makimbaque olhou uma vez mais para a palma das suas mãos que cuspia suor devagarinho, como um doce néctar de ambrósia. Nunca tinha tido tempo para apreciar as refrangências da luz na sua palma da mão. O universo parecia ali sorrir-lhe num espelho de cores que falavam umas com as outras, que se beijavam e que comiam pedaços de si ao acaso. Era bonito, pensava, mas não tão bonito como o chá de tília que a minha avó fazia em dias de tempestade. Até a chuva se demorava um pouco mais na vidraça só para ver o bafo quente que a avó dava ao chá, enquanto as ervas se revolviam de um prazer enorme em ver-se destiladas à deriva nos seus destinos. Mas isto de olhar para a palma de mão tem muito que se lhe diga, dizia Zé, e ele sentia o Sol, grande e redondo, redondo e grande a dizer-lhe que sim com a cabeça. Perdi a memória, por momentos. Não. Espera. Olho a areia amarela e vermelha e às vezes castanha. Sou Zé Makimbaque. Não podia ser outro, claro, este Zé só há aqui e em mais nenhum sítio do mundo, mas não direi do universo porque ele é muito grande e ainda me perdia a tentar encontrar-me. Fiquemo-nos pelo nosso planeta, e olhem lá que já é trabalho que chegue para uma pessoa só. Até parecia que ele estava a falar com alguém, e na verdade até estava, os seus botões, meio casados meio descasados, disseram logo que sim, porque gostavam muito dele. Afinal, eram eles que pediam à sua pele para os tornar fresquinhos com as primeiras gotas da manhã. O deserto era imenso, imenso como a Praça ao fim-de-semana, imenso como quando não há carros e as pessoas se demoram em casa ou nos supermercados. Nunca percebi porque chamam aos supermercados supermercados. Uma vez, lembrava-se, chamara-lhes supermerdacos e todos se riram à sua volta, mas à falta do riso fizeram-lhe uma cara carrancuda. Enfim, ele gostava mais do novo nome que lhes arranjara, e a partir daí passou a chamar-lhes sempre supermerdacos. O que isso queria dizer ele não sabia, e nem sabia que as coisas tinham que querer dizer alguma coisa para serem compreendidas, mas aquilo que ele sabia é que o nome soava bem. Na verdade fora por isso que Zé estava ali onde estava. Não se lembrava bem, que a cabeça nunca fora muito grande para guardar alguma coisa, embora ele guardasse secretamente o desejo ou a reminescência de que ela era tão grande quanto ele quisesse, mas deixava sempre esse pensamento voar para longe, que os pensamentos não gostam de ficar muito tempo no mesmo sítio. Chamar supermerdacos a supermercados é uma tarefa muito penosa, digna de um Sísifo que carrega uma pedra do tamanho de um arranha-céus. No fundo, ninguém gosta de supermerdacos, ou supermercados, mas a verdade é que todos vão lá. Tudo começara quando uns psicólogos brilhantes que só comiam batatas fritas de pacote e tinham duzentos doutoramentos, sendo que quatro deles eram honoris causa, resolveram fazer mais um estudo brilhante sobre os meandros dessa coisa complicada que é a psique humana. Claro que o pior que pode acontecer no mundo, no nosso e talvez noutros, é meter seres humanos a tentarem descobrir o que nos faz ser uns seres humanos. O resultado nunca pode dar alguma coisa de jeito, apenas um esgoto ou dois, ou uma casca de banana, se se tiver sorte. Mas os psicólogos, como eram tão brilhantes aos olhos dos Senhores Directores Das Empresas Que Controlavam O Mundo, tiveram todos os meios aos seus alcances para poder chegar à equação matemática que ia explicar por completo e em definitivo o que faz um ser humano ser um ser humano. Cá ao Zé, desconfiado como ele é, essa história nunca lhe cheirou bem. Em tempos também tinha gostado dessas histórias, tinham-lhe contado muitas quando era pequeno, e em tempos que já lá vão até ele tinha querido ir estudar psicologia numa dessas Universidades De Renome Internacional. Mas por este ou por aquele motivo não se conseguia decidir quanto ao seu destino. E como essa indecisão era grande, foi bater à porta da casa onde mora o Destino, que é um bicho que nunca se vê mas anda sempre por aí, ou por aqui, e fez um acordo com ele. Deixo-te aqui o meu destino que nunca tive porque, também, ele foi sempre teu. O Destino ficou risonho e desatou às gargalhadas, uma gargalhada cósmica porque, como nós bem sabemos, o Destino é filho do Universo e ainda tem algum humor que conseguiu herdar do pai. Mas aquele era realmente um grande tesouro, é que nunca lhe tinham dito uma coisa daquelas de uma forma tão clara, tão azul como o azul do céu num dia em que o céu do azul deixa as nuvens dormir até tarde em casa para estender o seu manto mais à vontade. Foi também nessa altura que começaram os problemas do Zé porque as pessoas não gostavam nada de quem não tinha destinos para dar e vender, e sobretudo para roubar, é o passatempo preferido das pessoas. Passatempo e passatampas!, dizia sempre o nosso Zé. Foi nesse dia que ele viu a notícia no jornal de que os Senhores Professores Doutores Muitas Vezes estavam quase a decifrar a equação que explicava tudo quanto havia para explicar no mundo. Ele sentiu-se muito assustado de repente, sem saber o como nem o porquê. e quando foi à internet ver os desenvolvimentos que tinham até então ocorrido deparou-se com um triste espectáculo. Então não é que tinham ido prender os Doutores todos num laboratório e não os deixavam sair enquanto não encontrassem a solução! Isso não se faz, excepto se falamos de pessoas que fazem mais pelo mundo estando de boca fechada do que de boca aberta. Mas como toda a gente trabalha melhor sobre imposição externa, sobretudo quando se é um amante da flagelação, os cientistas adoraram a ideia e desataram a correr para os laboratórios do mundo, e começaram a pensar, e a pensar muito, a fazer tanta força para pensar que saíam rolos de fumo das suas cabeças e cheirava muito mal, a coisas queimadas e mortas, algumas delas já enterradas, mas ainda com aquele cheiro a podre que nos faz torcer o nariz sempre que passamos por elas. Elas sentem-se muito ofendidas, nesses casos, porque o dever delas é cheirarem mal, e é por isso que o Zé, apesar de não poder passar sem torcer o nariz sempre lhes dava razão. Mas quando o último cientista do último canto do mundo se fechou no último laboratório que estava vago e começou a pensar duramente na equação, quando todos no mundo e o mundo em todos estava pensando, quando o fumo branco que saía das suas cabeças se juntou todo num grande novelo de lã fofa, começou a escurecer muito, tão escuro que até o escuro tinha medo de sair de casa à noite. O Sol bem que tentava separar os farrapos de pensamentos, mas eles estavam cheios de termos e fórmulas e constantes, de letras gregas e árabes e romanas e de parâmetros, de estatística e de derivadas, integrais e primitivas, e aquele enleio era tão grande que nem o Sol quis chegar mais perto da teia que o ameaçava engolir. As nuvens começaram a cobrir toda a terra, e em breve toda ela escureceu, ficou tão suja que as pessoas já não sabiam se era a terra que se tinha tornado mais branca porque o sujo das ruas parecia mais claro ou se era o céu que tinha escurecido a tal ponto do preto e do esgoto passarem pela mesma coisa. O preto ficava muito chateado porque estavam a querer-lhe meter aquele mau cheiro do esgoto em cheio, de cima a baixo, e tanta zanga se gerava que o mundo se tornava cada vez mais negro, cada vez mais sujo, e de repente houve até um termo da equação que surgiu a explicar a sujidade, e ela aumentava sempre de forma exponencial. Parecia mesmo o fim do mundo. E foi aí que começou a chover. Choveu noite e choveu dia, choveu sempre e muito, e as pessoas, as que ainda acreditavam na Bíblia, que por sinal eram cada vez menos e cada vez mais ao mesmo tempo, disseram logo que vinha aí o apocalipse, que era o sinal do fim, e que todos iam ser envolvidos nos seus pecados. E esta expressão ganhou tanta força que começou tudo a pecar, pecavam as velhotas com os velhotes e os velhotes com as velhotas, os novos com as novas e as novas com os novos, os pais com os tios e os irmãos com os primos, e assaltavam até lojas e faziam emissões contínuas de televisão para ver quem enlouquecia mais depressa. Uns passavam a andar de pernas para o ar, outros matavam-se logo para não terem que ver o fim mais logo, uns poucos riam à gargalhada para morrerem de riso, outros choravam ainda mais, e o caldo engrossava e ficava um pouco mais salgado. Surgiram logo teorias matemáticas nas cabeças de todos os génios do mundo, tudo aquilo seria fruto do diabo, e quem sabe da diaba, se não fosse castigo de deus algum deus os poderia salvar, se não era deus se era Alá, se não era Alá era Mustafá, se não era Mustafá era o Quim Zé, se não era o Quim Zé era o Buda, se não era o Buda era o Lao Tsé, mas como ninguém sabia nessa altura quem era o Lao Tsé porque só viam televisão, então pensavam logo que estavam a fazer confusão e deixavam-se de ideias. Mas como tantas cabeças pensantes pensavam ao mesmo tempo, então não havia margem para dúvidas, e todos desataram a atribuir culpas a uns e a outros, a esfolarem-se e a guerrearem, a cuspirem e a peidarem, a andar sempre molhados sem nunca estarem limpos, e aquela água toda começou a cheirar muito mal, e em pouco tempo já sabia a vómito. Todos se empurravam e se comiam uns aos outros, e de repente o canibalismo passou a prática nacional, internacional e comensal, com honras de Presidentes Disto e Daqueloutro, ou Daqui ou Dali. Felizmente o Dalí já tinha morrido nessa altura, senão daria pulos de contente e iria a correr enfiar-lhes molhos de pincéis pelo cu acima, coisa que pelo menos um terço da população gostaria imenso. Mas como não tinham pincéis, nem tintas, nem mentes, nem mentiras, como estava tudo alagado e diluído em tanta água, começaram a afogar-se nela. Quem não gostou desta conversa foi o Sol, que para além de ter perdido o protagonismo naquela terra agora também era ignorado e enxovalhado daquela maneira. Não senhor, tenho que pôr ordem neste mar de alagados e de alagadiços, e vai daí e começou a inchar e a soprar, e a soprar e a inchar de tal maneira que os pensamentos enovelados começaram a ficar raquíticos de tanto serem esticados pela água e encolhidos pelo Sol. A equação estava quase completa, e a terra estava mesmo prestes a verter as suas águas todas pelo cano abaixo, que é como quem diz para os esgotos do universo, mas o último raio de Sol que chegava à terra apressou-se mais que os seus companheiros e deu o esticanço final ao pensamento que se estava formando que ele se partiu em todos. Ora, como os pensamentos se erguiam todos em pirâmide, uma pirâmide de novelos sempre e cada vez mais emaranhados, e como o raiozinho malandreco foi logo quebrar um pensamento daqueles que estavam em baixo, pimba, lá se foi toda a pirâmide de uma só vez, colapsou toda no mar das ideias que para ali andavam afogou-se toda, puxou com ela os cientistas todos, fez nascer um monstro marinho cheio de fome que chegou e os comeu todos, e nessa altura o Zé só se lembrava era do seu tetra-avô Cronos que também gostava de fazer coisas dessas mas que depois parou porque tinha o colesterol muito alto, e toda a gente sabe que numa idade como a dele não se podem fazer caso de ideias como essas. Mas esse monstro, essa besta fenomenal que deixou os poucos que viviam ainda ou que se iam suicidar nesse momento de boca aberta, tinha uma boca tão grande, mas tão grande que, para além de engolir todos os Professores-Doutores e todos os novelos do pensamento, mesmo emaranhados, engoliu a água toda, mas não deixou sequer um pingo dela para poder lavar as mãos daquele assunto numa baciazinha de louça daquelas que tinham sobrado e que a avó tinha religiosamente guardado no terceira prateleira a contar de quem vez das escadas ao fundo. O Sol até arrotava de satisfação, tinha-lhe sabido bem restaurar o seu saber sobre o domínio daquela aguada toda, para mostrar que ainda era ele que mandava na água, que ela, bicha traiçoeira, sempre lhe cuspia uns borrifos para ouvir aquele som maroto que a faz passar a vapor. Sóis como eu não podem tolerar umas manchazinhas no orgulho, ora essa. O problema é que o Sol tinha um buraco no orgulho, e sempre que tentava guardar um bocadinho dele ele caía logo para baixo, para a terra, e se calhar era por isso que havia tanta gente orgulhosa no mundo. O nosso Zé, desgraçadinho como era, ficou todo encharcado, mas como achava que aquilo se ia passar mais dia menos dia, e como se estava a borrifar de calma para a situação, resolveu fechar-se em casa e ir nadar um bocadinho nos meandros da sua mente, que ele não era desses que gostavam de saber o que é que ela estava a saborear, era antes daqueles que se deitavam a nadar por ela fora sem saber o que iriam encontrar na próxima curva do caminho. Caíu num sono tão profundo, mas tão profundo, que nem a água se atreveu a acordá-lo da navegação em alto-mar, e apenas lhe mordiscava os pés de vez em quando. Porque o Zé ficou encharcado, completamente encharcado, mas foi tudo por dentro, que por fora continuava tão seco como quando tinha nascido para o sol. Quando lhe diziam isto ele ria sempre e dizia que também tinha nascido para o dó e para o mi, lá longe onde o sol não se põe. As pessoas riam sempre porque lhes ficava bem, mas poucas ou nenhuma percebia aquilo que ele dizia. Ele, farto já de tanto pensamento, sim, ele, que não gostava nada de pensar, ou melhor, ele, que gostava era de não pensar em nada, deitou-se a adormecer, e hibernou longamente até passar todo este espectáculo. Estava mesmo no ponto mais alto do seu sonho quando começou a sentir esse calor todo na sua mão e essas gotinhas tão gostosas na sua palma, e foi aqui que acordou para aquilo que nunca pudera imaginar que viesse a ser a sua vida: estava sozinho, sem uma alma ao pé de si, num quarto sem paredes numa casa sem tempo, e à sua frente um deserto, decerto infinito, a olhar, sempre a perder de vista, e tanto o era que ele, de tanto o olhar, ia ficando sem uma vista ou duas.

Sem comentários: