segunda-feira, 5 de novembro de 2007

pesa-me na inteligência querer ser tudo e o não conseguir. Pesa-me não escrever tanto e tão bem como Pessoa, não porque me faltem os modos e os estados que até ele me levariam, mas antes porque decidi não abandonar estudos universitários. A falsa erudição é um mal necessário para se poder comprar a liberdade neste mundo. Somos escravos do dinheiro, e mal de nós se não empregamos todas as nossas forças em reunir um quinhão que nos permita fazer aquilo que nos apetece. Mal de nós se temos sentimentos megalómanos, ou ambições desmedidas. Mas, por sorte, ou pela natureza que é própria ao que sou, calhou-me desejar sentir sozinho e com muito pouco apoio físico por onde me exprimir. Uns meios são melhores que outros, é certo, um teclado de computador, quando se está bem treinado na arte de dactilografar, pode discorrer a uma taxa que é mais amiga ao revolver da alma. Guardei as coisas realmente grandes para o sonho, e a verdade é que não há nada mais grandioso onde as poderia guardar. O mistério, talvez, mas esse não me pertence, se é que algo me pertece, apenas a sua presença troça de mim como uma criança de qualquer gesto pensado ou indecisão de adulto.

4 comentários:

player1331 disse...

"Guardei as coisas realmente grandes para o sonho, e a verdade é que não há nada mais grandioso onde as poderia guardar"

gostei...

no entanto este discorrer de palavras, numa leitura muito superfifical e rápida, levar-me-ia a dizer que um certo fatalismo está subjacente a todos estes textos...
quererá o senhor dizer que tem uma linha da vida com um smiley ao contrário? tal não posso crer...
se bem que não serei a melhor pessoa para lhe dizer que a vida é bela (e amarela, segundo consta, mas confesso nunca percebi o porquê do amarelo, nunca gostei muito de tal cor...) dir-lhe-ei que não somos tão maus (nós...sim nós... os estudantes, os portugueses, os europeus, os humanos....) quanto fazemos crer...e que por cada barbaridade que vejo surgir existe sempre um gesto revelador dos mais nobres sentimentos...

mas gosto da maneira como escreves... e também gosto do Pessoa (ou dos Pessoas...como preferires) mas suponho que ao comparares as duas escritas tentarás comparar o mar com o céu...
e se tentares a única coisa que vês é que ambos são azuis e que são grandes...
de resto não os poderás comparar...
acho eu... mas e daí eu não percebo nada disto... ando só aqui a mandar "bitaites"
e pronto...diria que é mais ou menos isto...que o comment já tá maior do que o teu texto :S

gostei :)

Daniel disse...

Todo aquele que sente é capaz de fazer-se atravessar por tantos e tão diversos estados de alma que estes se lhe tornam difíceis de descrever. Mas todo aquele que sente mais não pode deixar de sentir com mais força as fronteiras daquilo que ele próprio é. O ser humano passa grande parte da sua vida insatisfeito com aquilo que é e, por isso mesmo, sempre à procura de ser aquilo que não é. Superficiais são aqueles que se preocupam com o ter descurando o ser. Cada um é como uma flama que ora chispa de rubro ora tosse fuligem, e é impossível haver rubro que não dê em fuligem, é impossível haver fuligem que não possa alimentar de novo esse rubro. O importante não é só produzir desse fumo, é usar esse fumo para poder alimentar todas as chispas-a-haver que aí há pelo mundo. E o que é magnífico, arrebatador, é que cada uma dessas chispas é incrivelmente diferente de todas as outras, e que entre uma e outra a única coisa que existe é um espaço sem chispas. No fundo é Kuhn quem tem razão: existem paradigmas incomensuráveis. Então não se trata de fazer uma comparação, trata-se de construir uma alusão que permita dar esse salto quântico para o desconhecido. A única coisa que pode falar é a intuição, toda ela decorrente de um estado extático de loucura. O resto são apenas quilos e quilos de matemática. Por isso, se queremos fazer algo verdadeiramente original, temos que andar depurando a realidade: um poeta é um depurador da realidade, e sobretudo neste nosso tempo, é um depurador porque procura ver as coisas como elas são, como elas realmente são, e não como a nós nos parecem ser. O poeta é, portanto, um anulador do ser, um despersonalizado, o que o faz andar indistinto entre o tudo e o nada, que é o sítio onde se encontra o sonho. Se somos mais analíticos, como Pessoa, então partimo-nos e repartimo-nos por diversas, múltiplas, infinitas personalidades, todas iguais e todas diferentes; mas se somos sintéticos procuramos antes a união de cada parte com o todo, o subjectivo, a pluralidade de interacções que estruturam a arquitectura da vida. Ao poeta não lhe interessa descobrir qual é a arquitectura da vida - sabe lá ele se a vida tem alguma arquitectura! - mas apenas insuflar aos outros a dúvida: é pela dúvida que se pode ir vendo as ruas que há enquanto por cá caminhamos. Mais do que escrever coisas grandes, o que é preciso é escrever coisas que possam crescer por si próprias. E é isso que te desejo.

grassa disse...

Descobri o teu blog via blog do Banzai e, epá, muito sinceramente, a tua escrita dá-me cólicas de prazer...

Se a prisão de ventre fosse um estado fruto da leitura, então eu diria que já não defeco vai para mais de três dias...

Esta é a forma mais escatologicamente bonita que eu tenho de te dizer que, sim senhor, tens o dom da palavra...

Daniel disse...

sinto-me honrado por provocar em ti tamanha reacção visceral. A verdade é que há tanta gente por aí que já não tem vísceras que se torna raro encontrar alguém que possa sentir algo com elas - os males do mundo podem resumir-se a meia dúzia de escatologias. Feel free to feel tantas cólicas quantas quiseres.