sábado, 25 de agosto de 2007

Aqueles gracejos já não eram novos para ele e agora lisonjeavam a sua tranquila e orgulhosa soberania. Agora, mais do que nunca, o seu estranho nome parecia-lhe uma profecia. O ar tépido e cinzento parecia-lhe tão intemporal, a sua própria disposição tão fluida e impessoal, que todas as épocas lhe pareciam uma só. Um momento antes, o fantasmo do antigo reino dos Viquingues tinha espreitado por entre a roupagem da cidade envolta em névoa. Agora, diante do nome do fabuloso criador, parecia-lhe escutar o rumor de vagas ondas e ver uma forma alada voar sobre as ondas e elevar-se lentamente nos ares. Que significaria aquilo? Seria uma bizarra iluminura a abrir uma página de um livro medieval de profecias e símbolos, um homem-falcão a voar sobre o mar em direcção ao sol, uma profecia do destino que nascera para cumprir e tinha vindo a seguir através das névoas da infância e da adolescência, um símbolo do artista a forjar de novo, na sua oficina, com o barro inerte da terra, um novo ser sublime, impalpável e imperecível?

O seu coração estremeceu; a sua respiração acelerou-se e um sopro audaz perpassou pelos seus membros, como se já estivesse a voar em direcção ao sol. O seu coração fremiu num êxtase de medo e a sua alma levantou voo. A sua alma pairava nos ares por lá do mundo e sabia que o seu corpo estava purificado por um sopro e liberto da incerteza, radioso e diluído no elemento do espírito. Um êxtase de voo deu brilho aos seus olhos e agitou a sua respiração e tornou trémulos, audazes e radiosos os seus membros arrebatados pelo vento.

Onde estava agora a sua adolescência? Onde estava a alma que se tinha mantido afastada do seu destino, para lamber sozinha a vergonha das suas feridas, e se refugiara na sua casa de miséria e subterfúgio, para se revestir de sudários desbotados e coroas de flores que murchavam mal lhes tocavam? E onde estava ele?

Estava sozinho. Estava livre, feliz e próximo do cerne selvagem da vida. Estava sozinho e jovem e predisposto e rebelde de coração, só, no meio do ar selvagem e das águas salobras, da colheita marinha de conchas e algas e da velada luz cinzenta e de figuras de crianças e raparigas envergando trajos alegres e de cores claras, e de vozes infantis e juvenis que se erguiam no ar.

A sua alma penetrava num mundo novo, fantástico, confuso, indistinto como um mundo submarino, atravessado por formas e seres nebulosos. Um mundo, um clarão ou uma flor? Bruxuleando e tremulando, tremulando e desdobrando-se, uma luz que irrompia, uma flor que nascia, estendia-se numa infindável sucessão de si própria, irrompendo, totalmente rubra, e desdobrando-se e desmaiando até ao mais pálido tom rosado, pétala a pétala, onda de luz a onda de luz, inundando os céus com os seus clarões suaves, cada um mais profundo que o anterior.

Ergueu-se lentamente e, recordando o êxtase do seu sonho, suspirou de alegria.


(um pequeno Retrato do Artista Quando Jovem por James Joyce)

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