sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Mitologia da Saudade II

APOLOGIA AO SEBASTIANISMO

Mas qual é o papel importante do mito sebastianista neste aspecto? Primeiro que tudo é necessário distinguir as duas vertentes do mito: a vertente exotérica e a vertente esotérica. Entendido de forma exotérica, este mito não passa de mais um mito messiânico, de uma crença estática na vinda de alguma personalidade ou pessoa que, há muito desaparecida do panorama português, possa, de novo, levantar a sua chama. A crença no aparecimento de um cavaleiro armado que cavalga um dorso branco numa manhã de nevoeiro não é só irrisória, mas também profundamente ignorante e, devemos dizê-lo com toda a clareza, completamente estúpida pela ausência de inteligência que apresenta. Uma crença deste tipo só poderá ser comparável à crença daquilo que se chama "o príncipe encantado", que é aquele ser perfeito que irá salvar das garras de uma madrasta odiosa alguma princesa bem formosa. O problema nesta consideração do mito é exactamente o facto daquilo que existe de eterno no mito ser completamente trucidado. É, na verdade, uma ausência de análise que faz, neste campo e mas também noutros, fazer descer o mito à categoria de acontecimento físico. Viver pensando que um dia irá aparecer um homem com uma armadura montado num cavalo branco numa noite de nevoeiro é troçar da sua própria inteligência. Assim, para mostrar aos cientistas do nosso tempo que o que interessa no Mito, no verdadeiro Mito, é o seu carácter eterno ou arquetípico, simbólico, é preciso, e nunca será demais, notar que entender que o significado de um mito, seja este ou qualquer outro, seja exactamente aquele que a maior parte das pessoas atribui ao significado de cada uma das palavras que os homens utilizam para expressar esse mito não passa de uma análise descuidada, redutora e que corrompe pervertidamente o verdadeiro significado - o significado simbólico - do Mito.

A ausência de discernimento que leva a elaborar tão fantasiosas e estúpidas acepções ao significado do Mito só se pode justificar com uma total ausência de inteligência por parte de quem elabora tais análises. Primeiro que tudo, o mito sebastianista tem a sua origem em tempos remotos, e não no nosso tempo, e portanto só será desvirtuoso atribuir significados correntes a mitos ou situações que só fazem sentido (isto é, que só estão perfeitamente contextualizadas) nos seus próprios tempo e espaço. O primeiro procedimento será, então, pensar como alguém que viveu na época em que esse Mito terá surgido sob a sua face sebastianista. E o que significa pensar como alguém dessa época? Significa sobretudo estudar esse contexto histórico e tentar descobrir quais as redes de associação de ideias que poderiam existir na mente de uma pessoa que vivesse nesse mesmo contexto. Aqui, essas redes de associação de ideias referem-se tanto aos objectos físicos, do quotidiano, como aos termos empregues para os designar; e mais importante que isso, referem-se sobretudo às associações mentais signo-significado que eram atribuídas. No caso de um mito que é discorrido em textos e registos escritos, utilizando a linguagem escrita, ou seja, as palavras, é então necessário fazer o levantamento conceptual dos termos empregues na descrição do mito: identificar as palavras utilizadas e tentar encontrar quais os sentidos ou significados que eram atribuídos a cada uma dessas palavras. Mas a exegese de um texto, seja ele qual for, não se pode basear somente em palavras, visto que estas se encontram organizadas em frases, e estas em corpos de texto mais ou menos complexos, de ordem superior. É, portanto, necessário ainda tentar encontrar qual o sentido ou significado de cada uma das frases do texto escrito, e de cada um dos parágrafos, até que se chegue ao sentido ou significado de todo o texto. É preciso clarificar também outro aspecto: é que esta interpretação não parte da soma de significados consoante os termos empregues. Esta interpretação parte, isso sim, da procura da emergência de novos sentidos ou significados pela colocação de determinados conjuntos de palavras em proximidade ou à distância uns dos outros. Aplicando o conceito da Ecologia de princípio emergente, é necessário reconhecer se existem (e a investigação neste campo da Semiótica parece mostrar-nos que a máxima gestaltista de que o todo é muito mais do que a mera soma das partes se verifica, veja-se o exemplo de textos como os de Umberto Eco) significados diferentes dos normalmente associados a cada uma das palavras utilizadas de forma isolada. O conjunto desses princípios emergentes, a que podemos chamar efeitos de sentido (são os princípios que se subentendem a partir de um texto e que têm como objectivo criar uma nova constelação de significados que se eleve para além da mais habitual ou corriqueira acepção), é que são o verdadeiro objecto de estudo para o historiador do Mito ou da Religião. Há, portanto, que primeiro saber compreender (saber ler) a linguagem que é utilizada para escrever cada palavra do texto. Depois, é necessário saber qual o significado que a cada palavra, naquele contexto histórico, se lhe atribuía. Em seguida, é preciso procurar os princípios que emergem do posicionamento de determinadas palavras ao redor de outras. Depois, os princípio que emergem da localização de determinados conjuntos de palavras, e de frases inteiras, em consonância com outras. Finalmente, é preciso encontrar qual o sentido emergente do texto, qual o seu objectivo, qual o seu papel, qual a sua importância global. O verdadeiro significado do mito sebastianista só se pode compreender quando elevamos a nossa interpretação até aos níveis mais cimeiros da rede de associações conceptuais que é criada pelo texto.

O que aqui se defende, neste aspecto, é que quanto mais nos aproximamos dessa rede de associações conceptuais, mais deixamos de focar a nossa atenção no objecto físico que constitui o suporte para a palavra (ou seja, aquilo que a palavra nomeia) e mais focamos a nossa atenção no objecto conceptual que está ou que foi pretendido estar por quem elaborou um determinado texto. Com uma exegese deste tipo é possível chegar, caso ele exista, ao significado atemporal (que escapa completamente ao domínio do tempo) e aespacial (que escapa completamente ao domínio do espaço) do texto, a Ideia Pura, ou o Conceito Puro. E é aí que tudo se revela (se houver alguma coisa para se revelar, bem entendido. Se um texto não possui essa dimensão supra-temporal e supra-espacial, diremos um significado simbólico ou arquetípico, esta análise não faz sentido algum. Da mesma maneira, a exegese só poderá ir até onde o autor, consciente ou inconscientemente, levou o texto, e caso ele não tenha chegado até este nível de riqueza conceptual, então qualquer análise de ordem igual ou superior é irrisória.).

Portanto, sendo o Mito verdadeiro e autêntico da ordem do puramente conceptual, ou sabendo que a sua existência só é possível pela existência de um plano de interpretação simbólica (em que os objectos físicos ou palavras são apenas suporte para associar a cada um deles um conceito puro, uma ideia puramente conceptual), essa é a única forma verdadeiramente válida de interpretar o verdadeiro significado (não é mais que chegar até esse significado) pela exegese do texto. É aqui que reside toda a importância do Mito, e neste caso particular do Mito Sebastianista.

Sem comentários: