domingo, 19 de agosto de 2007

Breve História Do Futuro

Vivemos na era da overdose de informação. Quando antes falávamos de inacessibilidade cultural a todos, hoje temos um excesso de informação a atravessar-nos todos os dias. Só poderemos superar esta situação de dois modos: ou diminuindo a parcela de informação em trânsito todos os dias ou aumentando a nossa capacidade perceptiva para que possamos assimilar e acomodar essa informação. Que solução será a melhor? Ainda que possamos discordar de outros pontos, a verdade é que existe, de facto, um limite físico para a nossa capacidade perceptiva, isto é, para a quantidade de informação que podemos percepcionar num dado momento. Para além de esta restrição sensorial (e é bom notar que se trata de uma restrição que é devido à configuração que possuem os nossos sentidos; exemplos: os nossos olhos só conseguem ver um dado número de imagens por segundo, só são estimulados num intervalo de alguns comprimentos de onda, só conseguimos ouvir determinadas frequências, etc.), há também que ter em consideração a forma como armazenamos a informação. Na verdade, nem toda a informação é armazenada, ou pelo menos nem toda a informação é armazenada da mesma forma. Há que ter em conta a dinâmica da formação da memória que está associada à captação e armazenamento desta e ao seu esquecimento. Os estudos na área da neurobiologia que foram até então realizados apontam um resultado interessante: recordamos mais facilmente aquilo que já recordámos previamente mais vezes. Assim, parece existir uma hierarquia de memórias, não só ao nível da sua captação, visto que seleccionamos aquilo que é mais importante de entre o que é menos importante, e há portanto desde o momento da captação uma polarização dessa informação (aspecto qualitativo), mas também quanto à frequência com que recordamos uma determinada memória (aspecto quantitativo). Os estudos nesta área mostram que o processo de esquecimento consiste não na eliminação da memória, mas sim na construção de um véu de inacessibilidade a essa memória. A natureza dessa inacessibilidade é desconhecida, mas o que parece é que a memória é remetida para as zonas insconscientes da mente humana. Estas são as características da mente humana que nos limitam a uma plena consciência daquilo que armazenamos como memória. Portanto, o aumento da capacidade perceptiva humana está limitado à partida. O percurso mais simples parece ser então o de diminuir a quantidade de informação que chega até nós. Recusando manter a mente sempre ocupada com alguma coisa talvez possamos ter mais tempo para poder recordar mais memórias, e assim aumentar a nossa capacidade perceptiva. Este é o caminho mais fácil e que pode ser trilhado por um maior número de pessoas, e nos próximos tempos será aquele que irá ser privilegiado. Contudo, é preciso notar que, para que não haja uma perda de qualidade na menor quantidade de informação que chega até nós, é necessário que exista uma depuração dessa mesma informação; isto é, a informação que poderá ser percepcionada terá que ser seleccionada, e criteriosamente, para que apenas a informação relevante (ou seja, a informação que nos permite fazer alguma coisa, que nos permite ser aquilo que somos) possa ser captada. Aqui, o papel de todos os meios de comunicação que foram até hoje inventados vai ser essencial. Toda a fartura e superabundância de informação vai ser útil, já que existe tanta informação que cada pessoa terá inevitavelmente que escolher qual a informação a que pretende aceder. Assim, num autêntico processo de transmutação alquímica, aquilo que era defeito passará a ser uma virtude. Esta situação continuará a extremar-se até atingir o ponto em que determinado tipo de informação é preferido em detrimento de outro. Essa valoração diferencial vai levar ao colapso das estruturas informativas, visto que irá deixar de existir quem as apoie e suporte a sua acção. O terreno informativo vai, assim, resvalar e assistir-se-á à derradeira polarização da informação. Enquanto decorre esta crise muita coisa irá mudar no que toca ao modo de organização social. Mas o curioso é que esta depuração, o meio mais rápido de evolução social, vai tornar-se paradoxalmente no meio mais lento de evolução individual. O desaparecimento de determinadas instâncias informativas irá limitar a liberdade de escolha individual, e pode até dar origem a uma ditadura de informação. Assim, esta não poderá ser a única resposta para a evolução da humanidade. Será preciso então aumentar a capacidade perceptiva, isto é, adaptá-la ao novo mundo de informação. Aumentando a capacidade perceptiva (e é bom notar que este se trata de um processo individual, que se dirige não à sociedade enquanto agregado sociológico, mas só e apenas a cada elemento, à pessoa), haverá capacidade para percepcionar tanto a mesma informação que existe, e portanto para exercer uma escolha dessa informação mais consciente, como para percepcionar ainda mais informação, aumentando portanto ambos os aspectos qualitativo e quantitativo. Eis que chegámos ao ponto em que Pessoa chegou: o seu manifesto futurista (e far-nos-á bem dizer futurista visto que se trata de uma história acerca daquilo que se passará no futuro) indica claramente que "não existem curas sociais", e a única maneira de poder aumentar exponencialmente a nossa capacidade perceptiva (ou pelo menos aumentá-la até um ponto que se aproxima de um andamento exponencial) é despersonalizarmo-nos personalizando-nos, ou seja, sermos capazes de nos despirmos da pessoa, dessa máscara que é a nossa, e nos podermos vestir com outras máscaras e até com outros fatos, para que possamos sentir o mundo não só de mais do que uma maneira, mas sim de todas as maneiras. Portanto, não só irá aparecer um supra-Camões, como também referiu Pessoa, mas irão aparecer vários supra-Camões que, numa época de informação generalizada, vão conseguir sentir o mundo de maneiras tão várias e distintas umas das outras que irão desenvolver a sua percepção até onde nenhum outro homem a conseguiu desenvolver. Esses supra-Camões terão o estatuto de Budas autênticos, para falar de acordo com a tradição oriental, ou então o estatuto de Génios esclarecidos, para falar de acordo com a tradição ocidental, visto que dominarão, se não todas, grande parte das áreas do conhecimento humano e conseguirão, sozinhos, e repito, sem qualquer ajuda de outras pessoas, e apenas graças à sua mais ampla capacidade perceptiva, fazer, eles próprios, andar o mundo inteiro. E mais, como já noutras ocasiões da História, irão ser respeitados como ninguém até hoje foi, visto que a sua inteligência ultrapassará todas as expectativas que todos os outros homens possam alguma vez ter sonhado para a inteligência humana. E quando esse dia chegar, teremos na terra o céu e no céu a terra, o em cima como o em baixo, cumprida a Era dos Mil Budas.

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