no nosso mundo não há religião, há medicina.
Os padres foram esquecidos por extinção,
como uns devassos que devem ser metidos
em prisão ou cadeira eléctrica. Nem o jovem Sebastião
de Carvalho e Melo os teria expulsado tão bem,
como com o valor que lhes foi dado, que é mau,
como convém. Aos médicos foi então dado tudo. As
pratas, os ouros, o altar, a casa do culto, as vestes
do papa, o veludo, o damasco, o carmesim, o baraço
e a cruz à volta do pescoço, e isto sem grande embaraço.
Trocou-se a Bíblia pela Anatomia do Corpo, esse poema
ilustrado que é servido em caldo grosso e fechado, acabado
e morto. O poder de criar foi a Deus tirado, e quem o ganhou
virou bisturi, espátula, pinça e escopro. E o poder de matar também,
que a cruz traz seu desgosto. Mas tudo bem, fez-se o que se pôde,
aguentou-se o que dizia a máquina, até que não fosse
a onda cerebral ficar intacta se poderia continuar, nesse sono
profundo e doce, como quando alguém recita qualquer gramática.
Antes era o Diabo, agora é a Doença, essa inimiga
do pecado do Corpo, dantes era da Alma, e assim
amada e amante trocam de disfarce e de bata, e
se mascaram de novo tratante e tratada, figurino
e figurante, neste palco que é a sala de operação errante,
de sedativo sedante, de espada desensaiada, de ser
de borco, costura descosida, de coisa mal-amanhada,
desfigurada, torcida e trucidada, que outrora fora pessoa
inteira e honrada, que vivia e respirava, que gritava e
clamava, ensaiava e até o dedo apontava à estrutura
e ao ditante da farsa, da comédia, da tragédia, do
amante e da amada, divorciados, os dois, por desculpa
de instante, por perigo de recuada, por véu infamante ou
saída descompassada. Afinal, eles os dois eram os mesmos,
eles os dois eram os nada que sempre foram e sempre serão,
unidos ou separados, cosidos ou descosidos, enfarpelados
ou sem velo, eram o ter e o sem tê-lo, o que é preciso
é que se unam um ao outro, sem sossego, num misto
de ciência e fé, que se enrole novelo, que se destrua
patranha e reine o desassossego, que espante o ditante,
o infame e o tratante e que entre no sê-lo de uma vez,
e por um instante, basta só um momento, tudo
ficaria num rompante não o de Nietzsche, como desculpa
de passado, mas só o real presente, lançado ao vento, arrancado
ao mundo, preso ao universo pela liberdade sem fundo,
no sentido de um verso que quer tudo, que
pretende nada e que sabe o inverso, o simétrico e o
ausente, ver o futuro no passado e o passado presente,
só assim se anda, só assim se navega, ter na mente
o instante e na alma o que não sossega, ser assim
pelo mundo, entregue ao prazer dado, ser cristão
e ser mouro, ser perdido e achado, ser tudo tudo
tudo como ninguém nunca vira, ser perfeito e
ser puro, ser como a voz da lira.
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